Folha de S. Paulo


'Sou da Maré, fiz cursinho na favela e entrei numa universidade pública'

A dona de casa Patrícia Martinez França, 38, havia arquivado o sonho de entrar na faculdade, após o nascimento das quatro filhas e diante do valor alto de um cursinho pré-vestibular.

Moradora da Maré, maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, ela descobriu um cursinho gratuito na própria comunidade, oferecido pela Redes da Maré.

O pré-vestibular aqui da favela já levou 1.300 moradores à universidade.

Fundada pela paraibana Eliana Sousa Silva, líder comunitária e intelectual forjada na Maré, a ONG desenvolve projetos em áreas como educação e segurança pública. Eliana é finalista do Prêmio Empreendedor Social e concorre também na categoria Escolha do Leitor; vote.

Depois de matriculada, Patrícia enfrentou um outro obstáculo inesperado: a ira do marido que não lhe permitia estudar.

Ele chegou até mesmo a tirá-la à força de dentro da sala de aula. "Ele estava acostumado com a 'Amélia', dona de casa, que passa, lava, cozinha e cuida dos filhos", conta.

Patrícia se separou e tomou as rédeas da própria vida. Após três anos de muito estudo, a moradora da Maré foi aprovada no tão esperado vestibular do Instituto de Letras da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Hoje, orgulha-se da conquista e de viver na Maré. "Aprendi a valorizar o lugar onde moro."

Primeira integrante da família a cursar uma universidade pública, ela abriu caminho para as filhas gêmeas.

A exemplo da mãe, Clara e Clarissa, 16, também fizeram cursinho preparatório na Redes da Maré e entraram em escolas técnicas profissionalizantes de referência. "O estudo muda vidas."

Leia a seguir o depoimento de Patrícia à Folha.

Na Lata
Ex-aluna do cursinho pré-vestibular da Redes da Maré, Patrícia França cursa letras na UERJ
Ex-aluna do cursinho pré-vestibular da Redes da Maré, Patrícia França cursa letras na UERJ

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Na primeira aula do curso de letras da UERJ, em 2014, eu me apresentei dizendo: 'Moro na Maré'. Causei espanto entre os alunos na sala.

Fui aprovada porque fiz parte do pré-vestibular da Maré. Isso para mim é muito gratificante. Não é em todas as comunidades que se tem essa oportunidade.

Moro na comunidade Salsa e Merengue, na Maré, há 17 anos.

Sempre quis ser professora. Está no meu sangue. Aos 12 anos, eu ensinava para outras crianças e aos 15 já ganhava meu dinheiro dando aula. Gosto de alfabetizar.

Sempre soube o que queria da minha vida: estudar. Não pude antes por ter que trabalhar para criar minhas quatro filhas, além do fato de um cursinho ser muito caro.

Conheci o pré-vestibular da Redes da Maré por acaso. Fui à associação de moradores e a secretária perguntou se eu gostaria de estudar. Eu me inscrevi em 2010.

Foi um ano muito difícil. Meu marido não aceitou que eu estudasse. Ele estava acostumado com a 'Amélia', dona de casa, que passa, lava, cozinha e cuida dos filhos.

Ele ficou louco quando soube que eu me matriculei no cursinho sem o consentimento dele.

Por que eu teria que pedir para estudar? Por que pedir autorização para fazer algo tão bom para minha vida e que vai beneficiar minhas filhas? Afinal, se eu mudasse a minha vida, mudaria a delas também.

Meu marido apareceu no primeiro dia de aula no pré-vestibular e fez um escândalo. Falou: 'Você sai desse curso ou vou quebrar tudo'. Eu respondi: 'Então, quebra'.

Ele me fez passar muita vergonha e pensou que eu não voltaria mais às aulas. Não tive apoio dele. Era só Deus e os professores, que são meus amigos.

No primeiro ano de cursinho, não consegui passar no vestibular. Em 2011, cheguei a abandonar as aulas, mas olhei para trás e vi que ficaria velhinha sem ter feito algo que sempre quis.

Por isso, voltei em 2012. Também não consegui aprovação.

Não adianta estudar só na sala de aula. Quando eu me dediquei muito mais, eu consegui. Em 2013, fui aprovada na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Hoje estou fazendo o que gosto, cursando o terceiro período da faculdade de letras, com especialização em português/espanhol.

Sou a primeira da família a entrar uma universidade pública e represento também a Maré entre os meus colegas e professores.

Antes, dizia que morava em outro lugar, tinha vergonha em falar que era daqui. Negava a minha raiz. Só que agora também vejo outras pessoas da comunidade estudando na UERJ e mudando suas vidas. O estudo, de fato, muda.

Aprendi a valorizar o lugar onde moro. Aqui é um bairro que tem pessoas maravilhosas e trabalhadoras. Onde quer que eu vá, bato no peito e tenho orgulho em falar hoje que sou da Maré.

Em outras comunidades não se tem essa oportunidade. Se a gente for pensar bem, o governo não entra para ajudar os pobres.

Quer que fiquemos cada vez mais pobres e ignorantes. Mas existe ONGs, como a Rede da Maré, que pensa nos moradores. Não pagamos nada pelo cursinho e temos qualidade.

Hoje, minhas filhas têm outra vida. Mudaram a concepção e as amizades e estão pensando também em fazer faculdade.

As gêmeas, Clara e Clarissa, de 16 anos, também entraram em instituições públicas depois de fazer um cursinho preparatório na ONG: uma cursa administração na Faetec (Fundação de Apoio à Escola Técnica) e a outra engenharia de alimentos na IFRJ (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro).

Minha filha mais velha, Thaís, 20, trabalha no RH de uma empresa e terminando o ensino médio vai se matricular no cursinho da Redes da Maré. Ela sonha em entrar também para a UERJ.

Somos exemplos para a família e os amigos.

Todo mundo acha que [ser aprovado em uma universidade pública], é uma coisa impossível de acontecer com um morador de comunidade. Mas é possível, sim, se a gente levar a sério, se dedicar, ter foco e saber o que quer da vida.


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