Folha de S. Paulo


"O grafite mudou minha vida", diz professora vítima de abuso sexual

Ela sofreu o primeiro abuso sexual aos 10 anos. Alexandra Fonseca, 41, vivia com a mãe e cinco irmãos em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, quando passou a ser abusada sexualmente por um vizinho.

O homem usava de um subterfúgio para violentá-la. "Ele era do centro de umbanda e se utilizava de supostas entidades para me amedrontar e começar os abusos", recorda-se.

Na Lata
A professora e grafiteira Alexandra Fonseca, a Mel, na sede da Rede Nami, no Rio
A professora e grafiteira Alexandra Fonseca, a Mel, na sede da Rede Nami, no Rio

As investidas duraram até os 16 anos, quando Alexandra fugiu de casa. Só se deu conta de que era vítima de um abusador quando virou Mel Graffiti.

Passou também a fazer parte da Rede Nami, organização sem fins lucrativos que usa o grafite e outras artes urbanas para promover os direitos das mulheres.

Fundada pela artista plástica e grafiteira Panmela Castro, 34, a Rede Nami é finalista do Prêmio Empreendedor Social de Futuro 2015 e concorre também na categoria Escolha do Leitor 2015; vote.

Alexandra levou 29 anos para conseguir falar pela primeira vez dos abusos sofridos na adolescência.

Hoje, ela percorre comunidades, escolas públicas e centros de referência de atendimento à mulher para falar sobre questões de gênero, tipos de violência e ferramentas da Lei Maria da Penha.

Além de incentivar às mulheres a usarem a arte para expressar suas vivências e divulgar a lei e o Ligue 180 –canal gratuito de orientação sobre direitos e serviços públicos para mulheres.

"O feminismo me despertou e orientou. Eu aprendi a buscar os meus direitos", diz.

Leia a seguir o depoimento dela à Folha.

*

Quando eu tinha 10 anos, papai saiu de casa. Minha mãe ficou com seis crianças. Um vizinho se tornou amigo dela e aproveitou do lado afetivo de pai para começar a abusar de mim.

Ele era um homem religioso, do centro de Umbanda. Sempre me chamava para ir à casa dele e entrar em um quartinho. Mamãe falava para eu ir rezar e para que ele consultasse os espíritos.

Eu sabia o que acontecia lá dentro, mas ela não. Quando eu entrava, ele já estava com uma entidade [incorporado por espíritos]. Ele usava disso para me amedrontar e começar os abusos.

Tinha muito medo, eu era uma criança. As cenas eram terríveis. Ele ficava bravo e eu, oprimida. Não podia correr, reagir. Ficava paralisada, sem poder sair.

No momento em que falava que queria mamar no peitinho... era complicado. Ele era muito velho, se masturbava.

Quando saía de lá, eu ia para o banheiro me lavar. Tinha nojo.

Ele só não tirou minha virgindade. Dizia que estava me preparando para quando eu fizesse 18 anos.

Eu me afastei das minhas irmãs. Aos 12 anos, vendia picolés e salgadinhos, estudava e não parava em casa. Só voltava para dormir e comer.

Fugi aos 16 anos. Fui morar com o meu namorado, que hoje é meu marido, e a família dele.

Quando fiz 18 anos, fui visitar minha mãe e esse vizinho me chamou. Ele tinha preparado todo o quarto e queria me dar um 'presente' de aniversário. Ele disse que a entidade queria a minha virgindade.

Eu me revoltei. Contei tudo para a minha mãe. E aí minha irmã também abriu a boca. E depois outras três irmãs e uma prima. Todas foram vítimas dele. E eu me senti culpada por me calar por tanto tempo.

Esse homem morreu e nunca foi denunciado.

RENASCIMENTO

Só tive consciência [do abuso sexual] depois que entrei na Rede Nami. Até então eu era presa naquilo e tinha vergonha.

Eu me libertei dessa situação e passei a falar há pouco tempo.

O grafite mudou a minha vida. Hoje tenho oportunidade de ter o conteúdo que a Rede Nami oferece e orientar os jovens. Fiquei um período estudando a Lei Maria da Penha. Têm muitos que ficam calados por vergonha, medo.

Hoje sou também uma artista conhecida pela Rede Nami, sou grafiteira e professora.

Tive a oportunidade de entrar numa escola para dar aula de desenho, mas o diretor queria uma grafiteira e eu nem sabia o que era.

Eu vivia no meu mundo, lá na Baixada Fluminense. Não conhecia o Rio, metrô, nada.

Como só tinha curso de grafite no Rio, tive que sair do meu mundo. Nas minhas pesquisas encontrei a Panmela [Castro].

Comecei a fazer o curso dela de grafite no meio de gente rica. Eu não tinha dinheiro, mas tinha garra de aprender. Muitos desistiram e eu fiquei.

Trabalho em escolas dentro do projeto Mais Educação, lidando com aqueles alunos que os diretores falam 'não têm mais jeito'.

É aí que a Mel entra para colorir a vida deles com grafite e falar que tem jeito sim. São esses que se tornam grandes grafiteiros.

Amo dar aula. Nessas oficinas já vivenciei com outras meninas o mesmo que aconteceu comigo.

O grafite é uma forma de expressão e eu trabalho nas escolas, comunidades e centros de atendimento falando para as mulheres vítimas de violência não se calarem, lutarem e se expressarem.

A Rede Nami dá oportunidade para termos independência. Nós chegamos aqui com baixa autoestima e somos abraçadas e valorizadas.

Os homens acham que o grafite é masculino. Êpa: tem lugar para mulher também.

Vamos dividir [o muro] porque somos iguais. O feminismo me despertou e orientou. Eu aprendi a buscar os meus direitos.


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