Folha de S. Paulo


Em barco pelo Amazonas, professor ensina alunos a fazer e a ganhar pão

Arquivo pessoal
Raimundo Sales, professor de confeitaria e panificação no barco escola, onde dá aula
Raimundo Sales, professor de confeitaria e panificação no barco escola, onde dá aula para ribeirinhos

Há 15 anos a rotina de Raimundo Sales, 50, é atracar e desatracar nos extensos rios do Norte do Brasil. Tudo para realizar um sonho antigo: ser professor.

Natural de Jatobá (422 km de São Luís), no Maranhão, Sales se mudou para Manaus (AM) aos 16 anos para poder estudar.

Cinco anos depois começaria a ministrar as sonhadas aulas. Mas não em uma sala convencional. Ele ensina no barco escola Saraúma, do Serviço Nacional de Aprendizagem (Senai), que há 36 anos oferece cursos profissionalizantes em comunidades ribeirinhas.

Professor mais antigo da embarcação, Salles já formou mais de 800 alunos, entre alunos de países vizinhos, ribeirinhos e indígenas, em sua maior especialidade: panificação e confeitaria. "É uma missão. Gosto de fazer o que faço com dedicação e esforço. Transmiti o conhecimento, ver as pessoas reproduzindo e gerando renda é muito gratificante", diz.

Leia a seguir o depoimento que ele deu à Folha diretamente de Mazagão, no Amapá, onde está atracado atualmente.

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Arquivo Pessoal
O professor de confeitaria e panificação Raimundo Sales exibe doce feito com ajuda de alunos
O professor de confeitaria e panificação Raimundo Sales exibe doce feito com ajuda de alunos

Para dar aula, a gente tem que gostar, assim como eu gosto de confeitaria, me sinto muito bem ensinando. Gosto de compartilhar o conhecimento. Eu também aprendo e me aperfeiçoo a cada aula.

Nasci no Maranhão, mas sai de lá aos 16 anos para estudar. Vim para o Amazonas para fazer um curso técnico agrícola.

Em 1993 eu trabalhava em uma indústria panificadora, fiz um curso de confeiteiro industrial no Senai de Manaus e comecei a atuar na área.

Fui convidado a entrar no Senai como professor de panificação e confeitaria, em 1998. Passei nos testes e fiz aperfeiçoamento na parte pedagógica.

Quando entrei já sabia do desafio: ficar dois meses longe da família em viagens, dando aulas nas unidades móveis –em carretas e no barco escola, que atendem ribeirinhos em comunidades onde a instituição não pode chegar.

Dou aula em Manaus e em municípios distantes da capital. No Amazonas, medimos a distância por dia e pelas calhas dos rios. Se tem cinco ou seis municípios que ficam no mesmo rio, o Senai faz uma parceira com as prefeituras para atender todos na mesma viagem.

Passamos quase um ano inteiro ensinando as pessoas dos municípios que banham os rios.

Em cada um, ficamos dois meses, oferecendo cursos de 160 horas. São 400, 450 alunos que recebem capacitação em várias áreas, como de panificação, confeitaria, informática, costura, elétrica, construção civil. São 22 cursos.

Durante os 60 dias, as aulas acontecem de segunda a sexta-feira dentro do próprio barco, onde ficam os professores e a tripulação.

Ensino a fazer pães, pizzas, tortas, sobremesas, bolos, recheios, glacês, salgados assados e fritos.

Já cheguei a ficar um ano fora de casa no barco. Mas agora fazemos, em média, quatro municípios por ano. São mais ou menos oito meses distante.

Sou casado, tenho um filho de 23 anos e uma filha de 19. Quando menores, era mais complicado, não tinha a telefonia como hoje.

DESAFIOS

Visitamos municípios carentes e, às vezes, os alunos não têm treinamento algum ou cursos de qualificação à disposição.

Chegamos lá e as pessoas aparecem de madrugada para fazer inscrição. As vagas são limitadas, de 18 a 20 por turma. Todos os cursos são gratuitos.

Mulheres, homens e jovens nos procuram. Geralmente eles não enxergam um horizonte, ficam lá esperando alguma instituição levar qualificação para eles.

Eu gosto é de compartilhar meu conhecimento. É tão bom ver o brilho nos olhos dos alunos. São tão carentes, mas têm muito interesse em aprender.

No final, saem muito felizes porque aprenderam a fazer um bolo de boa qualidade. É muito gratificante ver as pessoas se realizando por meio desses treinamentos.

É claro que o mercado de trabalho não vai absorver toda essa mão de obra, mas eles já começam a gerar renda, porque o treinamento dá base para que trabalharem na indústria ou em casa.

Não consigo enumerar por quantas cidades já passei, só aqui no Amazonas temos 62 municípios e são vários rios.

Em 2014, ficamos o ano inteiro em Macapá e Santana. Esse ano ainda estamos no Amapá.

Antes da prática, eles passam por um curso básico de matemática na parte teórica. Além de aprender sobre higiene, manipulação de alimentos e segurança no trabalho.

Já cheguei até à fronteira com a Colômbia, em Letícia. Vieram pessoas de outros países fazer o curso. Já dei aula para peruano, colombiano e indígenas também.

A comunicação é um pouco complicada, porque falam português com muita dificuldade. Tenho que repeti duas ou três vezes para eles absorverem.

Mas eu sei que esse trabalho pode mudar radicalmente a vida deles.

É gratificante vê-los felizes e aptos [para o trabalho] no final.

Em Laranjal do Jari, uma aluna tinha um forno e um saco de farinha em casa, ganhados da irmã, e não sabia o que fazer.

Logo no início do curso, ela começou a fazer os próprios pãezinhos e comercializar. Em duas semanas, já tinha usado todo o saco de farinha de 50 kg e estava comprando mais. Fez treinamento, se qualificou e começou a gerar renda.

Os alunos chegam aqui se sentindo impotentes, mas depois do curso ganham vida. É uma missão.

Depois de três ou cinco anos, o Senai entra em contato com os egressos do curso para saber se a formação serviu e como anda as coisas.

Quando retornamos aos municípios, as pessoas abriram confeitaria, doceira, padaria, estão trabalhando na indústria.

Tem uma árvore no Amazonas que solta uma pluma que tem umas sementes no meio. Onde ela cai, dá origem a uma nova planta. Semear conhecimento é isso: alunos brotam, crescem e dão frutos.


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