Folha de S. Paulo


Estímulo a doação a projetos de direito da criança pode estar ameaçado

A lei 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), entrou em vigor em janeiro de 2016 para a União, os Estados e o Distrito Federal e em janeiro de 2017 para os municípios, introduzindo um novo regime jurídico às parcerias entre as organizações da sociedade civil e o poder público.

Isso impactou toda a administração pública, direta e indireta, abrangendo, inclusive, os conselhos de direitos da criança e do adolescente.

Tais conselhos, além de serem órgãos de participação e controle social, são colegiados gestores dos Fundos da Infância e Adolescência –fundos temáticos específicos cujos recursos são previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como forma de assegurar o financiamento das políticas públicas e dos projetos de interesse público.

Entre as fontes de receita desses fundos estão as doações de pessoas físicas e jurídicas com possibilidade de dedução fiscal.

O MROSC não mudou essa sistemática. Manteve as principais funções dos conselhos na gestão dos fundos, que tratam da seleção, do monitoramento e da avaliação das parcerias, permanecendo de responsabilidade dos respectivos conselhos gestores suas próprias comissões.

As parcerias que são firmadas nesses casos são típicas de fomento, onde as organizações apresentam suas ideias e o conselho decide sobre elas.

Os projetos devem ser aprovados no conselho para serem executados com financiamento já existente no fundo ou podem ser aprovados para captar recursos junto à iniciativa privada.

Esta possibilidade da doação fiscal vinculada a determinado projeto específico aprovado previamente pelos conselhos gera divergência de opiniões. Isso porque a prática ainda não tem uma legislação consolidada em nível hierárquico legal.

Na ausência do regramento, o tema foi levado pelo Ministério Público ao Judiciário em pelo menos duas ocasiões por meio de ações civis públicas, e as decisões proferidas foram contraditórias.

A primeira ação, que tramita no Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco (TJPE), por iniciativa do Ministério Público Estadual, alega a inconstitucionalidade da resolução 19/2007 do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente de Pernambuco (CEDCA/PE), que regulamenta a "doação vinculada".

Em maio de 2017, a 4ª Câmara de Direito Público do TJPE julgou por unanimidade pela constitucionalidade da resolução, ou seja, manteve a possibilidade da "doação vinculada".

Já em outubro de 2017, foi julgado pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região o recurso da União Federal em outra ação civil pública, proposta desta vez pelo Ministério Público Federal, visando a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 12 e 13 da Resolução 137/2010 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Neste caso, prevaleceu entendimento oposto, no sentido de que o doador não pode indicar a destinação da verba autorizada pela resolução, encerrando assim a possibilidade da "doação vinculada", caso a decisão não seja revertida.

Ambas as decisões ainda não foram disponibilizadas ao público integralmente e não são aplicáveis, pois estão em fase recursal. Ao que tudo indica, o tema acabará chegando às instâncias superiores para que se tenha uma posição jurídica uniforme e definitiva.

Em breve síntese, o cerne da questão é a regulamentação do mecanismo da vinculação feita por meio de resoluções, que são normas infra legais, o que afrontaria o princípio da legalidade. O argumento contrário, por outro lado, é de que a lei delegou aos conselhos a prerrogativa de fixar critérios de utilização dos recursos.

A criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente como espaços de gestão compartilhada entre sociedade civil e o poder público com foco nas políticas públicas de promoção dos direitos de crianças e adolescentes, tem por intuito descentralizar e democratizar o ciclo de gestão da política pública e permitir que seja feita com participação popular.

Diante disso, não há afronta ao princípio da legalidade garantir que as renúncias fiscais sejam feitas no percentual definido e que a decisão sobre a sua alocação seja feita pelos conselhos respectivos.

O fato de o projeto ser aprovado pelo conselho e permitir que o doador eleja que o financiamento por sua doação seja aportado para este e não para aquele não tira dos conselhos a decisão de aprovação ou não.

Além disso, é preciso considerar a função da "doação vinculada", que tem a capacidade de fomentar o alcance dos fundos, incentivando as doações de particulares.

Em nosso entendimento, mais uma vez, não há ilegalidade nesta prática, na medida em que os planos de ação e os projetos a que os recursos poderão ser vinculados diretamente são obrigatoriamente aprovados previamente pelos conselhos gestores dos fundos.

A doação, por sua vez, é um ato de liberalidade dotado de intenção, independentemente de ter um incentivo fiscal atrelado.

Dentre os incentivos fiscais existentes, o dos Direitos da Criança e do Adolescente é o único que permite aos contribuintes a doação de até 6% do imposto sobre a renda apurado na Declaração de Ajuste Anual, quando a doação for efetivada até 31 de dezembro do próprio ano-calendário do imposto, ou de até 3% do imposto apurado na declaração.

Para a pessoa jurídica, o limite de dedução fiscal é de até 1% (um por cento) do imposto sobre a renda devido apurado com base no lucro real.

A decisão do TRF da 1ª Região vai na contramão dos avanços obtidos para aperfeiçoar a prática do incentivo fiscal.

Imprescindível que as organizações da sociedade civil da área se mobilizem junto ao parlamento para impulsionar projeto de lei que contemple a regulamentação da doação vinculada para impedir os desdobramentos dessas decisões que podem impactar negativamente o financiamento de projetos de interesse público e políticas públicas de promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes.

O momento é de ampliar as possibilidades de fomento para projetos de iniciativa da sociedade civil e não de reduzi-las.

LAÍS DE FIGUEIRÊDO LOPES, advogada que liderou por cinco anos a articulação técnica e política da agenda do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil no governo federal, e ANA LUISA FERREIRA PINTO, advogada e supervisora geral de Parcerias na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo entre 2016 e 2017, integram o escritório Szazi Bechara Storto Rosa Figueirêdo Lopes Advogados, parceiro do Prêmio Empreendedor Social


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