Folha de S. Paulo


Um Brasil sem dentistas para mais pobres discute a aplicação de botox

Tuca Vieira/Folhapress

O distanciamento geográfico torna as experiências mais intensas, as reflexões mais agudas e o olhar mais crítico. Estou fora do Brasil há 20 dias, participando de um "road show", no qual apresento os resultados de 15 anos de atuação da Turma do Bem, organização que se tornou a maior rede de voluntariado especializado do mundo, com mais de 17 mil dentistas atuando em 14 países.

Uma viagem que começou no início de dezembro, com uma palestra em Saint Moritz, na Suíça, como parte da programação do UBS Global Philanthropy Forum –o fórum global de filantropia.

Hoje, em Londres, acompanho com perplexidade o debate sobre a proibição da aplicação do botox em clínicas odontológicas. Na prática, a Justiça Federal proibiu os dentistas de aplicarem a toxina botulínica.

A minha perplexidade é resultado de um profundo cansaço de um brasileiro que há mais de três décadas luta pela democratização do atendimento odontológico para todos –sobretudo para os mais pobres.

Penso que essa "comoção" seria bem-vinda para lutar por 40 milhões de brasileiros que não vão ao dentista por motivos financeiros; por 16 milhões de cidadãos pobres que perderam os dentes. Gostaria que fosse em defesa do direito inalienável de sorrir e de se alimentar sem ter dor.

Onde está o dentista que cuida do idoso? No Instituto Bibancos de Odontologia (IBO) temos serviços para idosos, para pacientes oncológicos, para a extração do dente de leite e criopreservação de células-tronco.

Mas, onde está o debate sobre esses serviços pautados pela humanidade; serviços que vão além da vaidade? Vejo que só existe espaço para falar dessa bobagem.

Acho importante ampliar o debate para falar sobre gente que fica deformada com a aplicação de botox –seja pelo dentista, seja pelo dermatologista. Temos que dar espaço para coisas importantes.

Eu sinto falta de ouvir a voz daquele dentista que atua com questões relevantes e humanitárias; que atua também, dentro do bom senso, com odontologia estética. Temos que falar sobre saúde pública odontológica; falar sobre pessoas que morrem com infeção na boca. Pessoas que estão tendo suas vidas tragadas pela vaidade.

Não consigo conceber que o país que não tem atendimento odontológico gratuito para a população de baixa renda –ressalto, atendimento acessível e de qualidade– continua abrindo espaço para discutir a odontologia estética. Desespero! Essa é a palavra que define.

O projeto Dentista do Bem atende, anualmente, mais de 70 mil jovens de até 17 anos; uma fase da vida na qual sorrir com todos os dentes pode determinar empregos melhores; uma vida melhor.

No projeto Apolônias do Bem, atendemos mais de mil mulheres vítimas de violência que têm o direito de voltar a sorrir, de passar batom, de beijar e de não continuar a ver no espelho a marca da violência que sofreram.

Quando vejo os números de atendimento que realizamos não fico satisfeito. Nenhum Dentista do Bem fica. Queremos mais e mais, porque os problemas reais do Brasil exigem mais e mais de nós.

Estou fora do país para defender o projeto Melhor Dentista para o Mundo. Estou apresentando um negócio de impacto social –o aplicativo ISMYLI– capaz de tornar a organização Turma do Bem autossustentável.

De acordo com análises do Fórum Global de Filantropia, cerca de metade dos empreendimentos sociais desaparece depois de cinco anos de operação; muitas das iniciativas fracassam pela dependência de investidores sociais ou por apresentarem um único modelo de geração de recursos.

Na contramão dessa tendência há empreendedores sociais que lideram organizações com sistemas de financiamento criativos e diversificados para assegurar um modelo sustentável de atuação socioambiental. Temos que discutir essa temática!

Para uma plateia com mais de 200 filantropos, especialistas e empreendedores sociais, detalhei esse projeto de mais de 17 mil "dentistas loucos"; uma iniciativa que promove a inclusão social por meio do sorriso.

Na prática, uma OSCIP que oferece mais do que tratamentos odontológicos e ortodônticos: resgata a autoestima e a possibilidade de uma vida plena de jovens em situação de risco social e mulheres vítimas de violência. Estima-se que o retorno para sociedade, com os tratamentos conduzidos pelos Dentistas do Bem, aproxime-se hoje de R$ 1 bilhão.

Criei um projeto social baseado em uma aflição; uma iniciativa que se tornou um projeto mundial. O nosso país tem que mudar. Nós vamos ter que arrumar a nossa casa; fazer as mudanças necessárias. Queremos atender mais e mais pessoas. Para isso, trabalhamos para fomentar a cultura de inovação social, construindo negócios de impacto social disruptivos.

Parte desse trabalho é fomentar também uma discussão de alto nível. Antes de mover céu e terra em prol de procedimentos estéticos, vamos usar nossa voz para sermos Dentistas Melhores para o Mundo?

Você, dentista, considere-se desafiado a ser melhor!

FÁBIO BIBANCOS, cirurgião-dentista graduado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), é especialista em Odontopediatria e Ortodontia, mestre em saúde coletiva, fundador da Turma do Bem e integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais


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