Folha de S. Paulo


As questões das favelas são questões da cidade

Passados mais de 120 anos do surgimento da primeira favela na cidade do Rio de Janeiro, no Morro da Providência (antigo "Morro da Favela"), as favelas cariocas se consolidaram e constituíram-se como marcas da Cidade Maravilhosa. É impossível pensar na capital fluminense sem as favelas e suas contribuições à cultura, ao esporte, à música e à literatura (Machado de Assis, nasceu no Morro do Livramento).

Porém, como no início, as favelas cariocas são vistas e tratadas como territórios à parte. Seus problemas não são considerados como questões da cidade. Mesmo que nesses espaços morem mais de 22% do total de habitantes do município do Rio de Janeiro, cuja renda ultrapassa os R$ 12,3 bilhões/ano, segundo o instituto Data Favela.

Esse é o caso, por exemplo, do conjunto de Favelas da Maré e do Alemão, ambos na zona norte da cidade, que juntos somam mais de 245 mil habitantes, em sua maioria crianças e jovens. Desde o início de 2017, esses dois territórios têm sofrido com os constantes confrontos armados entre grupos criminosos locais e também com ações violentas da polícia.

Na Maré, por exemplo, nos dois primeiros meses do ano, foram assassinadas seis moradores. Entre eles Fernanda, uma menina de 7 anos de idade, atingida por uma bala perdida no quintal de casa, além de mais de 20 pessoas terem sido feridas.

Contribui para essa situação a chamada "guerra às drogas", que virou uma espécie de licença para matar dada pelo Estado às suas forças de segurança. Os tiroteios têm sido diários, interrompendo a rotina dos moradores que ficam invariavelmente sem escolas, postos de saúde, trabalho, e têm a vida ameaçada mesmo no interior de suas casas.

Dados levantados pela Redes de Desenvolvimento da Maré traduzem bem o gravíssimo quadro de violência a que são submetidos os moradores: a taxa de assassinatos (em decorrência de ação policial) por 100 mil/habitantes para o Brasil, em 2015, foi de 1,6, enquanto no Estado do Rio de Janeiro foi de 3,9. Na Maré este índice sobe para 12,8. Isso significa que os assassinatos na Maré foram oito vezes maiores do que no restante do país e três vezes maiores do que no Rio de Janeiro.

No conjunto de favelas do Alemão a situação não é diferente. Desde o início do ano, afora os tiroteios constantes, alguns moradores tiveram suas casas ocupadas por policias da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) que as fizeram de "bunker". Além de colocar a vida das pessoas em risco, tal atitude é um desrespeito à constituição e ao Estado democrático de Direito.

Esse tipo de atentado à vida, à dignidade e aos direitos dos moradores não pode ser visto como natural, ou, como querem alguns, como consequências da guerra travada contra às drogas. As mortes não podem ser aceitas como "baixas de guerra" porque a favela não está em guerra e seus moradores não são soldados inimigos. A política de segurança pública deve agir para preservar a vida e não para ameaçá-la.

A verdade, é que os moradores da Maré, do Alemão, assim como moradores do Rio de Janeiro, só querem é viver em paz. Para tanto, é preciso que as questões da favela sejam reconhecidas e tratadas como questões da cidade. Porque a favela é cidade.

EDSON DINIZ JUNIOR, professor, historiador e mestre em educação, é diretor da Redes da Maré, finalista do Prêmio Empreendedor Social 2015


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