Folha de S. Paulo


O equívoco do #FuturismoFeminista

Há quem defenda e acredite –como eu– em uma sociedade onde o binarismo de gênero não exista mais. Ou seja, na qual todas as pessoas possam estar soltas para transitar entre características femininas e masculinas. Talvez esses rótulos nem venham a existir mais, e, quando isso acontecer, nós, mulheres, estaremos finalmente livres dos julgamentos e amarras do "sexismo".

Talvez nem fôssemos mais mulheres ou homens, mas sim seres do sexo feminino ou masculino, determinados apenas pelo órgão genital, e nunca pela aparência, forma de agir, ou outros tipos de signos.

Nessa nova sociedade hipotética, as pessoas não precisariam necessariamente mudar seus corpos, pois isso não seria importante para sua identidade, porque o gênero não mais existiria.

Esse pensamento "descabido" lembra-me bem de uma de minhas personagens, criada cinco anos atrás, em Paris, quando metáforas ainda habitavam meus pensamentos. "Liberté" era uma mulher tão livre que nem sequer conseguiríamos imaginar.

A moça grafitada acompanhava um pássaro, e onde este a tocava, sangrava: uma lembrança de todas as mulheres que sofreram e deram suas vidas para que ela pudesse um dia ser assim. "Liberté" é o símbolo de um futurismo feminista.

Um ponto utópico em nossa história, que ainda não somos capazes de decifrar ou de entender. Com a morte do gênero, o masculino e o feminino passariam a não existir mais, e como este é um pensamento ainda incapaz de ser visualizado hoje, ela é uma "mulher" que não conseguimos imaginar.

Não sabemos o que seria e como seria, nem se realmente a palavra "mulher" seria a ideal para identificá-la.

Chamo aqui de futurismo feminista um movimento branco, burguês e até acadêmico, que pensa a mulher como autônoma em sua vida, de uma forma linda, mas que hoje ainda não é real. É coisa do futuro.

Seria incrível se esse futurismo existisse, e se nós fôssemos tão soberanas como acreditamos ser. Mas não, não somos. Trata-se de um equívoco pensar que estamos totalmente libertas e emancipadas.

Não há atenção à diversidade de experiências e de pontos de vista, marcando lugar, tempo e condição de cada mulher, incluindo as mais emancipadas –que também vivem nessa estrutura de sociedade patriarcal–, que, por mais que se sintam soltas, não são.

E, ainda, esse discurso futurista feminista não considera a grande parcela das mulheres que ainda vivem em condições inferiores de autonomia. Afinal, uma coisa é considerarmos a situação da mulher da cidade e outra é a da mulher do campo. Da mesma forma a mulher emancipada no Brasil difere bastante de outra emancipada na Áustria, por exemplo.

O Mapa da Violência de 2015 mostra que 147.691 mulheres precisaram de atendimento médico no Brasil em um ano, em função de violência doméstica, sexual ou de outro tipo. Isso significa que há 405 mulheres por dia no país recorrendo a algum serviço de saúde, em razão de violência.

Dessas agressões, 23% são cometidas por parceiros ou ex-parceiros, ou seja, uma das pessoas de seus círculos que as mulheres acreditam ou acreditavam mais poder confiar.

Enquanto houver dados como esses, as ideias introdutórias deste texto ainda hão de ocupar apenas o mundo das ideias e dos desejos. Já a batalha do dia a dia –em busca daqueles mesmos direitos pelos quais as mulheres já lutavam há um século, ou mais, fora da bolha do pensamento futuro feminista– ainda há de ser muito árdua, longa e, por vezes, até humilhante.

É preciso militar muito ainda pela garantia do direito norteador de todos os demais, que é o direito às decisões sobre o corpo e a vida da mulher, sem interferência de outros, sejam eles um companheiro, a família ou até o Estado.

PANMELA CASTRO é artista plástica, grafiteira, fundadora da Rede Nami e finalista do Prêmio Folha Empreendedor Social de Futuro 2015


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