Folha de S. Paulo


O desafio de entender novos arranjos familiares a partir da doação de óvulos

Conceber um filho faz parte do sonho da maioria das mulheres e dos homens. Sua não realização tende culturalmente a ser vista como perda de feminilidade/masculinidade ou inferioridade reprodutiva.

A maternidade e a paternidade são associadas ainda à ideia de realização pessoal, poder e felicidade. Isso é corroborado nas redes sociais, vide tantas etapas do ciclo reprodutivo compartilhadas.

A infertilidade também faz parte dessa tendência: opiniões, ofertas de ajuda, recomendações populares e científicas aparecem para "devolver a felicidade aos casais".

Entre o regozijo e o infortúnio, as cobranças aumentam, demonstrando que maternidade e paternidade não são mais uma decisão pessoal, mas coletiva.

É nesse contexto que a doação de óvulos ou sêmen e a fertilização in vitro colocam-se como aliados. Um processo no qual estão envolvidos vários indivíduos, além do doador ou doadora.

É preciso pensar na mulher que doa o óvulo e no seu companheiro ou companheira, no homem doador e na sua companheira ou companheiro, assim como na gestante substituta e em seu parceiro, bem como nas crianças.

Com base na doação e recepção de óvulos, por exemplo, novos arranjos familiares, genéticos e hereditários são constituídos. O fato é que formas de organização, papéis familiares e relações de afeto independem de laços consanguíneos.

Dessa forma, rompe-se o modelo tradicional de família, constituída a partir da união erótico sexual estável entre um homem e uma mulher. No qual, o patrimônio genético familiar, os bens sociais, culturais e de herança estão ligados a tal arranjo.

Doação de óvulo constitui um dos procedimentos da reprodução humana assistida (RHA). A princípio, o objetivo da doação era propiciar que mulheres sem ovócitos ou que não os tivesse saudáveis pudessem ter filhos.

A fecundação in vitro pode ocorrer também por substituição. É a popular "barriga de aluguel". No Brasil, ela deve ocorrer entre familiares, podendo se estender até a quarta geração da parentela.

Assim, mulheres que apresentam alterações anatômicas do útero ou que têm contraindicação clínica de engravidar podem recorrer à reprodução de substituição.

Pares homoafetivos também se valem dessa possibilidade para gerar seus próprios filhos. O que pode ocorrer com sêmen do marido ou companheiro ou com sêmen ou óvulo de terceiro.

A doação, no entanto, não pode ser comercial nem lucrativa. A identidade dos doadores e receptores também não pode ser revelada. A idade limite para as doações é de 35 anos para mulheres e 50 para homens.

Como no Brasil ainda não existe uma legislação que respalde juridicamente a reprodução assistida, o CFM (Conselho Federal de Medicina) vem suprindo essa lacuna por meio de resoluções, disciplinando eticamente os procedimentos. Apesar de não terem força de Lei e serem direcionadas apenas aos profissionais médicos, elas são o único instrumento a ordenar as práticas na área.

Em 2013, por exemplo, o o CFM baixou uma resolução incluindo os pares homoafetivos e as mulheres solteiras entre os possíveis beneficiários de tecnologias reprodutivas, ampliando as possibilidades de novos arranjos familiares.

A última resolução está pautada no posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, em 2011, reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A norma abriu às mulheres solteiras a possibilidade de engravidar utilizando um banco de sêmen.

São avanços pautados em contínuas negociações e mudanças comportamentais. Afinal, o direito à reprodução é constitucional e impõe aos profissionais de saúde, aos empreendedores sociais e à sociedade novos desafios.
O primeiro deles é se isentar de julgamentos morais e tentar compreender que cada novo arranjo familiar apresenta especificidades pautadas em direitos e deveres amparados pela Constituição.

Por isso, a importância de disseminar adequadamente informações, a fim de evitar práticas discriminatórias.

BERENICE ASSUMPÇÃO KIKUCHIi, doutoranda em Saúde e Desenvolvimento na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, é empreendedora social da Rede Folha


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