Folha de S. Paulo


Prisões sem armas, cadeados e polícia abrigam 3.500 condenados no país

Na entrada da Apac (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado), já sem as algemas, 11 novatos são recebidos pelos condenados veteranos locais, ali chamados de recuperandos.

Eles tiveram de passar por dez portas gradeadas do presídio de Timon (MA) abertas e trancadas, uma após a outra, por policiais armados e escoltados por cachorros –antes de chegarem à Apac, onde não há armas, carcereiros, uniformes ou apelidos.

FBAC

"Sejam bem-vindos, irmãos. Aqui vocês serão tratados como gente, e punidos com amor e respeito, e não com ignorância", explica Marcelo Santos, 27, condenado a 23 anos e 4 meses de prisão. "A Apac nos dá a oportunidade de mudarmos nós mesmos", avisa.

Marcelo é um dos mais de 3.500 homens e mulheres que cumprem pena nos 48 Centros de Reintegração Social da Apac, uma entidade civil sem fins lucrativos que tem como missão recuperar o preso, proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a justiça restaurativa.

Para isso, a entidade desenvolveu, já em 1972, uma terapêutica penal própria, chamada de método Apac e composta por 12 elementos, tais como trabalho, valorização humana, assistência jurídica, família, mérito e recuperando ajudando recuperando.

MENOS REINCIDÊNCIA

A metodologia tem apresentado resultados concretos: fugas são raras, o índice de reincidência é quase quatro vezes menor que o do sistema penitenciário comum (onde cerca de 80% daqueles que ganham liberdade logo voltam para trás das grades) e o custo por preso (R$ 1.090) corresponde a um terço da média gasta pelo Estado (R$ 3.472) em prisões comuns do país.

Uma estimativa da quantidade de recuperandos atendidos nas Apacs ao longo de mais de quatro décadas é de aproximadamente 33 mil condenados, segundo estimativa da federação.

A diferença nos custos se deve a dois fatores: a atuação de voluntários na administração e o trabalho dos presos, que fazem a limpeza, a comida e a segurança.

Eles são supervisionados por colegas que compõem o Conselho de Sinceridade e Solidariedade, o CSS, responsável por resolver pequenas divergências entre os internos e por zelar pelo cumprimento das regras, aplicando sanções leves.

Um atraso para a oração que antecede as refeições (feitas com louças e talheres comuns) pode fazer o recuperando perder o acesso às atividades de lazer (futebol e televisão) por ao menos um dia. Faltas mais graves são passadas para a administração, ou, dependendo do caso, para o juiz de execuções penais.

Para Valdeci Ferreira, 55, diretor da Fbac (Fraternidade Brasileira de Apoio ao Condenado), que coordena as Apacs e dissemina seu método, o segredo do sucesso está nos detalhes.

"Nós não temos dimensão da mudança que é a pessoa ser chamada pelo nome ou poder sentar-se num vaso sanitário comum", diz Ferreira, um dos finalistas do Prêmio Empreendedor Social 2017.

Ernane Barbosa Neves, o juiz da comarca de São João del Rei (MG), lembra de como via o modelo com desconfiança, antes de ser fiador de uma unidade no município. "Eu achava um absurdo. Não entendia como era possível um estabelecimento prisional em que a porta de entrada era controlada pelos próprios presos."

Depois da visita a uma unidade e da conversa com um ex-recuperando, a coisa mudou, e ele ajudou a implementar uma unidade na cidade, hoje transposta para um prédio próprio, erguido pelos presos, com fontes e jardins, marcenaria, horta e criação de porcos.

"Há uma resistência muito grande no poder Judiciário, no Ministério Público e na própria sociedade, que vê a Apac como hotel para bandido. Quem quer vingança se esquece de que o preso uma hora volta para a sociedade", ressalta.

OUTRA CHANCE

Condenado a 29 anos de prisão por dois homicídios, Adriano Antônio de Jesus, 38, confessa ter chegado à Apac de São João del Rei, oito anos atrás, com a intenção de fugir. "Tenho muito tempo de cadeia", justifica. "Mas isso mudou quando cheguei aqui porque percebi que poderia mudar de vida. Hoje tenho salário e ajudo meus filhos e minha mãe."

Jesus conta que, no sistema comum, sua mãe entrava no dia da visita chorando por causa da revista vexatória. "Ver a mãe assim por sua culpa é muito pesado e dá raiva", admite. "Hoje ela entra na Apac sorrindo e sai sorrindo."

Nas Apacs, os recuperandos têm o dia todo ocupado, seguindo o conselho popular que dita: cabeça vazia é a oficina do diabo. Despertam às 6h e têm uma rotina intensa de trabalho, estudos, atos religiosos e palestras que se estendem até as 22h.

Para isso, as Apacs mantêm parcerias com o setor público e com a iniciativa privada. Os Estados repassam verbas para parte do custeio da infraestrutura, e os municípios oferecem vagas de emprego para quem pode fazer trabalhos externos. A experiência com a iniciativa privada de Minas Gerais têm facilitado a capacitação profissional dos recuperandos e o acesso ao mercado de trabalho.

No dia a dia, no entanto, são os voluntários que tocam as unidades. Eles são, segundo Ferreira, a alma das Apacs. "Nada substitui o trabalho do voluntário, que atua de forma desinteressada, sem remuneração, o que faz os presos respeitarem e valorizarem especialmente essas pessoas." Hoje, 1.736 voluntários atuam nas 48 Apacs brasileiras.

Socorro Machado, 52, diretora da Apac de Timon (MA) é voluntária. "Perdi um irmão assassinado, mas o que eu vi nos presídios comuns eu não desejo nem para quem o matou. Hoje, não me vejo mais procurando culpados. Quero é contribuir para mudar essa história", diz.

"Quando alguém sai da Apac, a sociedade tinha de agradecer porque quem deixou ela era um criminoso, que voltou um cidadão de bem."


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