Folha de S. Paulo


Universitário cria ONG para levar óculos e diagnóstico a regiões carentes

No ano passado, Ralf Toenjes, fundador da Renovatio, ONG que leva óculos de baixo custo e diagnóstico oftalmológico para o interior do Brasil, foi diagnosticado, por acaso, com 2,5 graus de miopia em um olho e 0,5 no outro.

"Só descobri porque fui cobaia para regular o autorrefrator", diz ele, referindo-se ao aparelho oftalmológico de alta precisão, parte do kit que Ralf e sua equipe de médicos e voluntários transportam país afora em barcos e ônibus que já percorreram 17 Estados.

Renovatio

Como em casa de ferreiro o espeto é sempre de pau, a descoberta de que era míope aconteceu na comunidade Nossa Senhora, a uma hora de barco de Manaus (AM), durante a montagem de um consultório itinerante que permite ao empreendedor social olhar para um problema que afeta 42 milhões de brasileiros, a maioria sem acesso ao diagnóstico.

Finalistas 2017

"Só quem precisa de um par de óculos sabe o quão difícil é viver sem um", diz. Ele, no entanto, não necessitou de lentes para seguir uma trajetória brilhante. Quando criança, pensava em ser advogado. Em Petrópolis (RJ), cidade onde nasceu e viveu até a adolescência, sua inspiração era o pai de um amigo da sua rua, um juiz.

Toenjes nunca teve problemas na escola. Sempre tirou boas notas e seguidas vezes foi o primeiro da classe. Chegou a vencer olimpíadas de física e de matemática no seu colégio.

Ele sabe que diversos estudos mostram que alunos com problemas de visão podem ter dificuldade de aprendizado e, assim, acabam abandonando a escola.

OPORTUNIDADES

Quando chegou a hora da faculdade, inscreveu-se em vários vestibulares no Rio de Janeiro, PUC, FGV, Ibmec, Uerj. Foi aprovado em todos. E concorreu também a uma vaga na USP. "Todos diziam que eu tinha de estudar no Largo São Francisco, que essa é a melhor faculdade etc. etc. etc.". Foi também aprovado.

Em São Paulo, porém, começou a ter outras ideias. "No segundo semestre da faculdade, comecei a estagiar num escritório de direito concorrencial e vi que advogado não sabe fazer conta. Pensei: 'Vou fazer faculdade de economia e vou ganhar os contratos com um pé nas costas'."

Fez vestibular no Insper e começou então a cursar administração e economia. Três faculdades ao mesmo tempo. Mas aí faltou dinheiro para pagar o Insper. "Calhou então de eu fazer uma palestra no colégio Ipiranga, onde estudei em Petrópolis, porque eu tinha sido o primeiro aluno da escola a entrar no direito da USP. Durante a palestra, comecei a chorar quando disse que não tinha dinheiro para pagar o Insper", relembra.

A diretora da escola decidiu então ajudá-lo. Foi aí que a vida de Ralf Toenjes tomou outro rumo. Ou melhor, foi aí que ele decidiu dar outro rumo a sua vida. "Muita gente me ajudou na hora de fazer faculdade, e eu comecei a sentir necessidade de fazer algo pelas pessoas também."

Começou a nascer a ideia da Renovatio, uma história de empreendedorismo social fundada por Toenjes e três amigos há três anos que já distribuiu 15 mil pares de óculos a pessoas carentes desde 2014.

VISÃO DE FUTURO

A meta é dar acesso à visão a 1 milhão de brasileiros até 2021. Para ser atingida, ele criou a VerBem, um negócio social, pelo qual cada par de óculos vendido a preços populares resulta em um doado a pessoas de baixa renda pela ONG. 

É um modelo inovador para enfrentar um desafio enorme diante do fato que 85% dos municípios do país não contam com oftalmologista residente. Ralf enxergou uma solução durante um encontro do Enactus global, no México, quando conheceu o projeto OneDollarGlasses, criado por Martin Aufmuth na Alemanha.

"Eles mostraram que 680 milhões de pessoas no mundo, quase 10% da população mundial, precisam de um par de óculos, mas não podem pagar por ele. Pensei: 'podemos aplicar isso no Brasil. Não precisamos reinventar a roda'."

De volta, foi estudar o tema e descobriu que problemas relacionados à visão representam 23% dos casos de evasão escolar no Brasil -que tem a terceira maior taxa de evasão escolar (24,3%) entre os cem países de maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). "Se eu pudesse resolver só esse problema, já faria sentido ter um projeto de óculos no Brasil", resume.

Ao sonhar em ter uma iniciativa similar em casa, os alemães disseram-lhe que seriam necessários 33 mil euros –para trazer três máquinas e material e para treinar as pessoas que produziriam os óculos.

"Eu disse: 'beleza, podem vir'. Mas aí começou a correria. Em 12 de maio, quando a equipe chegou aqui, a gente tinha só R$ 3.000", conta ele, agora rindo. Uma semana depois, arrumou o dinheiro com o Bank of America, primeiro investidor-anjo da iniciativa. Por meio de crowdfunding, captou mais R$ 45 mil.

Daí para frente, as coisas começaram a andar melhor. E a ousadia de Toenjes foi recompensada com experiências como as vividas em Barcarena e em três outras comunidades do Pará, onde foram realizados os primeiros mutirões. Um dos pares de óculos foi parar na face de um catador de açaí, que nunca tinha feito consulta com um oftalmologista. 

"Quando ele saiu do consultório, já usando os óculos para corrigir seus seis graus de miopia, começou a chorar e a dizer: 'Não preciso mais subir, não preciso mais subir'". Ninguém entendeu nada. 

Toenjes explica, emocionado: "Ele só conseguia descobrir se o açaí estava pronto para ser colhido quando subia no açaizeiro, que chega a ter dez metros de altura, e chegava bem perto do fruto".

Com os óculos, o paraense passou a ver mais longe e o empreendedor também enxergou o impacto de sua ideia inovadora.


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