Folha de S. Paulo


Três jovens criam movimento por educação de qualidade e protagonismo

Tábata Amaral, 23, tem tudo para ser vista como o exemplo da ideia de que, com esforço, qualquer um pode prosperar. Hoje formada na Universidade Harvard, uma das melhores do mundo, ela cresceu na Vila Missionária, periferia na zona sul de São Paulo. A mãe era diarista; o pai, cobrador de ônibus. Começaram a vida juntos morando num quartinho numa ocupação.

Estudava na melhor escola estadual da região, que, mesmo assim, chegava a ter três aulas vagas num dia por falta de professores. A dedicação aos estudos levou Tábata a uma bolsa no colégio particular Etapa, um dos melhores da capital paulista.

Mapa Educação

As condições para o aprendizado melhoraram. Mas o deslocamento para a escola no centro expandido passou a exigir três horas de transporte público todos os dias, aos 13 anos de idade.

Muitas vezes, a estudante passava o dia apenas com um iogurte e um pão. Teve gastrite porque não se alimentava direito. Seguiu forte nos estudos mesmo assim. Perseguia o sonho de estudar fora, que começou quando viu na sétima série um vídeo sobre o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), faculdade americana também entre as melhores do mundo.

Encantou-se pelas imagens dos laboratórios, mas não entendeu uma palavra da narração, que era em inglês.

Finalistas 2017

Ainda com o idioma estrangeiro em nível rudimentar, foi aprovada em Harvard, com bolsa integral, devido ao seu desempenho escolar e a sua história. Passou então a se considerar um exemplo do poder da meritocracia?

"Fico incomodada com o número de vezes que minha história foi usada para mostrar que quem quer consegue, quem não consegue é vagabundo", afirma Tábata. "Isso é tão errado. Para contar minha história, é preciso contar cada oportunidade que eu tive, cada pessoa que me ajudou."

Os professores na escola estadual, ainda que com estrutura precária, deram a ela treinamento para participar das Olimpíadas de Matemática. O colégio particular ofereceu a bolsa pelo bom resultado na competição.

A bolsa foi insuficiente porque o deslocamento diário estava exaurindo-a física e financeiramente. O Etapa passou a pagar um hotel para que Tábata morasse próximo à escola durante a semana. Professores começaram a comprar comida para ela.

"Meu pai era muito inteligente, mas não teve as mesmas oportunidades. A vida dele foi diferente." O pai morreu em consequência do uso de álcool e drogas, quatro dias após ela ter sido aprovada em Harvard.

TIME UNIDO

A distância social entre a Vila Missionária e o centro expandido paulistano que Tábata passou a conhecer causaram-lhe inquietação. A região onde está sua casa possui 40 vezes mais famílias em extrema pobreza do que onde está o colégio particular, na Vila Mariana.

A jovem começou a procurar uma forma para diminuir essa distância e fazer com que sua história de menina da periferia que prosperou deixasse de ser exceção. Em Harvard, ela encontrou Renan Ferreirinha, 23. Ele vinha também "quebrando o impossível" por meio da educação.

Proveniente de família de classe média baixa, Renan havia deixado São Gonçalo, região metropolitana do Rio, para fazer os ensinos fundamental e médio na capital fluminense. A mudança só ocorreu porque ele conseguiu passar em sexto lugar entre 5.000 candidatos na seleção para o Colégio Militar do Rio de Janeiro.

O bom desempenho nessa escola pública, uma das melhores do Brasil, levou-o à Harvard.

Vinda da classe média, Lígia Stocche, 27, não havia passado por tantas dificuldades para chegar àquela universidade de ponta, mas os trabalhos sociais que fez em Ribeirão Preto (SP) a levaram a compartilhar do mesmo sentimento dos amigos: educação pública de boa qualidade é o caminho para melhorar a vida dos mais pobres.

As eleições presidenciais de 2014 no Brasil se aproximavam, e os três se incomodavam com o fato de a área praticamente não ser tema do debate -ajuste fiscal e corrupção dominavam a agenda.

Os três jovens, junto com colegas, fizeram mais de cem entrevistas, com educadores, gestores, professores e políticos, para entender gargalos e possibilidades para o ensino brasileiro. Foram ouvidos o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a então deputada federal Manuela D'Avila (PC do B), por exemplo.

Em agosto de 2014, lançaram o Manifesto Mapa do Buraco. O documento de 25 páginas apresentava bandeiras ligadas à esquerda (é preciso mais recursos para a educação) e à direita (corporativismo sindical atrapalha a melhoria do ensino). Eles buscavam apresentar a base para as discussões sobre a área.

O movimento dos jovens em prol da educação foi destaque na imprensa nacional. Eles também fizeram o único debate específico sobre educação com as chapas presidenciais daquela eleição. No fim do processo, sentiram que os ganhos tinham sido insuficientes. Educação seguia longe da prioridade da classe política.

Era um momento de decisão para eles. Por um lado, um diploma em Harvard abria portas no mundo corporativo e na academia. Por outro, a experiência com o Mapa do Buraco havia mostrado que eles tinham grande capacidade de mobilização social. E a desigualdade educacional que atinge milhões seguia como algo a ser atacado.

O CAMINHO PELA EDUCAÇÃO

Decisão tomada, o trio criou o Movimento Mapa Educação, em 2015. A ideia é dar ferramentas para que os jovens discutam como melhorar o ensino no país. Também visa fazer a ponte deles com os governantes.

"A experiência com pesquisa em laboratório foi fantástica, mas percebi que não conseguiria  atacar um problema que poderia mudar a vida de muitas pessoas", disse Lígia, que desistiu do doutorado nos EUA na área de engenharia de biomateriais para tocar o projeto no Brasil. "Não podemos ter um país minimamente decente se não houver educação de qualidade para todos", afirmou ela.

A principal ação do movimento ocorreu durante as eleições municipais de 2016. Pelas redes sociais, eles perguntaram para os jovens quais eram suas demandas em relação à educação. Questionaram, então, os candidatos a prefeito de São Paulo, Rio e Salvador. Cerca de 90% dos postulantes responderam as perguntas por meio de vídeos, que tiveram 850 mil visualizações.

O movimento agora prepara plataforma para acompanhar as promessas de campanha dos prefeitos para a área. E novas discussões para as eleições do ano que vem.
"O Mapa é a concretização de uma trajetória e de um sonho", diz Ferreirinha. "Quando vejo meus colegas de São Gonçalo, penso o que faltou para eles terem uma oportunidade. É educação."


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