Folha de S. Paulo


Bolivianas têm no futebol arma contra violência doméstica e trabalho pesado

Nancy Salva, 42, saiu da Bolívia há sete anos para fugir do ex-marido, que a espancava.

Largou os estudos em estatística e um emprego na área de pesquisa de mercado e processamento de dados para viver de costura, ofício que foi obrigada a aprender para sobreviver no Brasil.

Sem falar português e ilegal no país, trabalhou durante sete meses sem ganhar um real, trocando trabalho por um lugar para dormir e um prato de comida, que dividia com o filho pequeno, hoje com 16 anos.

"O dono [da oficina] dizia: 'uma máquina de costura, um prato de comida'. Tinha muita fome", diz ela, que se sujeitou a essas condições e a jornadas de trabalho de até 18 horas como forma de quitar as suas dívidas com os custos da vinda para o Brasil.

"Ele também era boliviano. Não há nada pior do que ser explorada por um igual, por alguém que passou o mesmo que você e hoje faz pior", conta ela. De acordo com estimativas do Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante), existem hoje 300 mil bolivianos em situação de informalidade em São Paulo. A grande maioria trabalha em oficinas de costura.

Com o auxilio da instituição, Salva regularizou sua situação no Brasil e hoje trabalha sozinha, até 12 horas por dia, numa oficina que montou num dos cômodos da casa. Consegue juntar R$ 1.500 por mês.

EM CAMPO

Mas não trabalha mais aos finais de semana. Agora, os sábados e os domingos são do futebol, esporte muito popular entre mulheres da Bolívia.

Torcedora do The Strongest e do Santos, Salva joga como zagueira num time só de mulheres bolivianas da Casa Verde.

"Apesar de ser uma sociedade machista, as mulheres são respeitadas no futebol", diz a peruana Soledad Requena de Spyer, 60, coordenadora de migração e gênero do Cami.

"Por mais que esteja apanhando em casa, o marido deixa ela jogar", explica Salva. Para ela, o futebol é uma forma de as mulheres se organizarem e ganharem a confiança uma das outras.

Há dois meses, uma colega de time a confidenciou que estava apanhando do marido e precisava de ajuda. "Ela estava toda machucada, mas daqui para baixo", diz ela apontando para o pescoço. "Por isso, a gente não conseguia saber o que ela sofria."

Salva ajudou a amiga a sair de casa e a levou para um abrigo longe do alcance do marido. "Expliquei que nós temos os mesmos direitos da brasileiras com relação a Lei Maria da Penha. Elas não sabem. Também não conseguem procurar ajuda da polícia por causa da língua", diz.

RODAS DE CONVERSA

No último domingo (17), o dia era de festa em Guaianases. Celebrava-se com um campeonato de futebol só de mulheres o aniversário da cidade boliviana de Cochabamba, comemorado no dia 14.

Na quadra de uma escola municipal, oito times disputavam o título. Na pequena arquibancada, familiares ficavam na torcida ao som do apito do juiz e de músicas em quéchua, um dos idiomas oficiais do país.

Após vencer a primeira partida e enquanto esperava o jogo seguinte, a costureira Dilma Chilaca, 35, que se reveza na zaga e no gol, chamou as colegas de time e algumas adversárias em quadra para uma conversa. Mas, ali, o assunto não era futebol.

Uma vez por mês, sempre após os jogos, um grupo de até 15 mulheres se reúne para conversar sobre temas como saúde, violência e empoderamento.

Com apoio do Cami, os encontros ocorrem em 13 bairros de São Paulo, em sua maioria na periferia, reduto dos imigrantes, que fogem dos altos custos de se viver no centro.

DE UNIFORME

Ainda com o uniforme de goleira do time Roda de Conversa e com o suor de quem acabou de sair de uma partida, Chilaca liderou o encontro num circulo montado abaixo do palco com os troféus da vencedoras e as bandeiras da Bolívia e de Cochabamba.

Depois de uma oração em mãos dadas com as amigas, ela distribuiu a cartilha em espanhol "Mujer - Da Vuelta La Página" ("Mulher, Vire a Página"), elaborado pelo Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica, do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Levado pela coordenadora do Cami, o material contém a íntegra traduzida da Lei Maria da Penha além informações para a mulher buscar ajuda em caso de violência.

"As rodas de conversa são uma forma de dar o poder do conhecimento, que elas não tem acesso em casa, no âmbito privado", diz Requena de Spyer, que será uma das participantes do Diálogos Transformadores - Trabalho e Imigração na Indústria da Moda, debate que a Folha e a Ashoka realizam na quinta-feira (28).

"A roda e o futebol ajudam a gente a ficar mais unida, para mostrar que a mulher não está sozinha", diz Chilaca. Nos encontros, ela conta com a ajuda do marido, Modesto Mejia, 38, que organiza as cadeiras e distribui refrigerantes. Na hora do jogo da mulher, ele também cuida da filha mais nova do casal, Thais, de 6 anos.

"Não tem preconceito com o futebol. É importante para desestressar depois de trabalhar todo dia 12, 17 horas", diz ele, que junto com a mulher e os filhos, também formam um time para jogos entre famílias. "Isso nos fortalece", completa Chilaca, fã do argentino Lionel Messi.


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