Folha de S. Paulo


Ex-república alternativa, Morada da Floresta vira usina de permacultura

Uma república de estudantes fundada nos anos 1990 que evoluiu para negócio social. Assim Cláudio Spínola define a sua Morada da Floresta.

Há sete anos como empresa, a Morada elabora e vende produtos e serviços para estimular práticas sustentáveis. Seus focos são resíduos orgânicos, fraldas de bebês e absorventes.

Em um sobrado da zona oeste de São Paulo funciona o seu laboratório de permacultura viva, onde se pratica culinária vegetariana, consumo consciente, e há sistemas de captação da água da chuva, utilização da energia solar, cultivo de horta e compostagem de resíduos.

Conheça a Morada da Floresta

Além de soluções prontas para o consumo, como as composteiras com minhocas, seu produto mais conhecido, a Morada faz projetos para implantação de sistemas combinados de horta e compostagem para casas, escolas, empresas, instituições e entes públicos.

Sedia ainda cursos e vivências em temas como hortas em apartamentos ou cultivo de abelhas sem ferrão. A Morada pode ser conhecida em visitas ecopedagógicas para ver todas essas práticas.

Para além dos resultados particulares de cada projeto, a força do negócio reside no caráter educativo de suas ações e exemplos, que buscam semear transformações de longa duração, acredita Spínola. "A existência de um espaço ecológico como o nosso na cidade inspira e mostra que é possível mudar os hábitos."

A pegada positiva pode ser verificada em alguns números. Na compostagem doméstica, por exemplo, consideradas as vendas de todas as composteiras, estão sendo compostados nas caixinhas com o selo da Morada da Floresta cerca de 7,5 toneladas de cascas de frutas, restos de legumes e verduras e demais sobras do preparo de comida a cada dia.

Esse volume de resíduo deixa de alimentar a rede custosa que se estabelece no trajeto de caminhão entre as portas das residências e a destinação final, no melhor dos casos um aterro sanitário, e no pior deles num lixão.

Com a compostagem, esse resíduo é retido em casa e, misturado a folhas secas ou serragem, é transformado e gera, em cerca de dois meses, adubo granulado e fertilizante líquido, ideais para alimentar hortas domésticas, fazer ninhos de mudas e fortalecer os jardins.

Cerca de 52% do lixo doméstico é de material orgânico e cada brasileiro produz em média 1 kg de resíduos por dia.

Além das pessoas que compram as composteiras, há as que aprendem a fazê-las com baldes, através dos vídeos tutoriais que a Morada da Floresta colocou no ar. No canal do YouTube, um deles tem 360 mil visualizações, de 2012 até hoje.

Nas fraldas não-decartáveis, o impacto também é alto. Do ponto de vista ambiental, considerando que cada bebê consome cerca de 6.000 unidades, o cálculo é de que com as vendas dos sete anos de produção foram subtraídos do caminho do aterro sanitário ou de lixões cerca de 4,8 milhões de fraldas.

Do ponto de vista da economia familiar, em vez de gastar cerca de R$ 5.000 na compra dos produtos descartáveis, o desembolso se reduz a R$ 1 mil em fraldas de pano.

MUDANÇA DE HÁBITOS

A mudança de comportamento que as novas práticas provocam é atestada por vários participantes dessas iniciativas. É o caso de Amélia Marques dos Santos, que mudou sua rotina e já se acostumou a passar diariamente antes do almoço na horta de seu condomínio para apanhar verduras frescas, como couve e alface. "Às vezes desço também à noite, com uma lanterna, para pegar erva cidreira para um chá."

Esses hábitos simples vieram depois que o condomínio Altos do Butantã, (que tem mais de 400 apartamentos) implantou um projeto de reaproveitamento dos resíduos orgânicos encomendado à Morada da Floresta, em junho de 2015.

A ideia era antiga, conta o síndico Rogério Trava, mas faltava escolher o melhor método para mudar a relação dos moradores com o lixo.

"Para nós não dá trabalho nenhum. Descasco os legumes e frutas e jogo no lixinho da pia. Um dia sim, outro não trago para o térreo, onde fica a compostagem", diz Maria José, também moradora do condomínio. "Acho que em qualquer conjunto dá para fazer", diz. "Quando começou, não sabia como seria. Mas, depois de quatro meses, quando vi o resultado, com o composto adubando as plantas e diminuindo o lixo, achei maravilhoso", completa.

"Tenho orgulho do lugar onde vivo, porque tem impacto ambiental menor", diz o síndico. "A facilidade de pegar as coisas na horta é agregadora. As pessoas criaram vínculos e a convivência melhorou. Até os conflitos do condomínio diminuíram."

E a economia não é nada desprezível. Os R$ 10 mil que eram gastos em seis meses com a compra de sacos plásticos para acondicionar o lixo, foram abatidos para R$ 3.400.

"Me sinto orgulhosa da experiência. A gente se sente feliz", diz Amélia.
Em um ano de projeto, o engajamento dos moradores é na separação de orgânicos em cada apartamento para alimentar a composteira é de 40%. Mesmo assim, a horta é livre para todos.

Além disso, há adubo de boa qualidade e sem custo para a horta e para o jardim do conjunto. A pegada ecológica diminuiu. São duas toneladas diárias a menos no lixo. Na composteira, os orgânicos geram uma tonelada de composto. "Outro dia vi um pai descer com sua filha para explicar todo o sistema. O processo é educativo. O retorno de tudo isso é grande, tanto do ponto de vista do dinheiro quanto do ponto de vista pessoal", conclui o síndico.

Nos Jardins, área nobre da capital, a mesma transformação acontece no apartamento da arquiteta Renata Portenoy em plena avenida Faria Lima. Só que ali foi o desejo de ter uma horta é que levou a moradora a fazer compostagem. "Eu já reciclava os resíduos secos e, quando comecei a fazer horta, senti falta de um recurso para adubar meu cultivo de forma natural."

Ela buscou um fornecedor e achou a Morada da Floresta. Comprou o kit de composteira plástica e hoje se orgulha de ter adubo para a horta que ela mesma faz e ainda fornecer para a mãe e para amigos. "O processo resgata valores que estão muito perdidos hoje em dia. Faz a gente se sentir mais responsável. Não é difícil desperdiçar menos", diz.

ESCOLAS ORGÂNICAS

A expertise da Morada da Floresta levou à escolha da empresa como consultora e executora local do projeto Escolas Mais Orgânicas. "Educação ambiental é fundamental para alavancar mudanças. Por isso, pensamos em envolver a rede de escolas da Prefeitura de São Paulo em um projeto de implantação com acompanhamento constante", diz Simão Pedro, secretário municipal de Serviços.

Assim, no início de 2016, 15 escolas municipais que já possuíam algum projeto ligado à compostagem e horta foram convidadas para participar.

Houve um intercâmbio de técnicos de São Paulo e da cidade de Copenhagen, na Dinamarca, para preparar o projeto. Foi criada uma plataforma de comunicação entre as escolas, além de encontros para discutir as experiências.

Os recursos vinham da coalização do clima, a CCAC (da sigla original Climate and Clean Air Coalition), da UNEP (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) e a realização foi feita pela ISWA (Associação Internacional de Resíduos Sólidos), com coordenação local da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais).

Além da plataforma de comunicação entre as escolas, o projeto produziu um manual de boas práticas, fruto das experiências vividas, com orientações técnicas para facilitar a gestão dos resíduos orgânicos nas escolas através da compostagem.

Gabriela Otero, da Abrelpe, que participou do projeto, diz que o impacto positivo vai além da mudança de destino do lixo. "As pessoas passam a se reunir e a olhar para alimentação mais saudável através da prática das hortas. Além disso, a boa gestão de resíduos impacta nas mudanças climáticas", diz. "A Morada, como é pioneira nisso, foi um parceiro fundamental."

Na EMEI Anísio Teixeira, escola municipal que tem 41 anos de funcionamento, a compostagem entrou na sala de aula, literalmente. Após o lanche, as crianças mesmo picam os restos e levam para as caixas de minhocas.

Na área externa, foi construído um canteiro para a horta. "O cuidado com o ambiente se aprende no contato", diz Simone Kenji, a diretora que está na escola desde 2008. Com os produtos da horta, os alunos fazem bolos e outras preparações.

Essas atividades acabam entrando na vida das famílias. Depois de aprender a fazer bolo de cenoura na escola, Simone conta que um aluno convidou o pai para cozinharem juntos em casa. Para ela, a história ilustra como os hábitos sustentáveis humanizam as relações e caminham da escola para a casa.

COMPOSTA SÃO PAULO

Mas o caminho também pode ser da casa para a escola, como foi o caso de Joaquim Félix. Hoje gestor ambiental do Colégio Dante Alighieri, ele mora em apartamento e não pensava que poderia fazer compostagem ali até que soube da existência do Composta São Paulo, em 2014.

O projeto da parceria da Morada da Floresta com a prefeitura da capital paulista distribuiu composteiras para famílias de todos os estratos sociais. Entre os 10 mil inscritos, Félix foi um dos 2 mil contemplados com sua composteira. Seguiu todas as orientações, participou das oficinas e da rede de apoios e esclarecimentos via Facebook e adorou. "É apaixonante", diz Félix.

"Hoje, em casa, o bicho de estimação é a minhoca", brinca. Os filhos de 7 e 12 anos participam ativamente. "Alguns hábitos mudaram. Passamos a consumir mais algumas frutas em detrimento de outras para dar comida para as minhocas."

A experiência doméstica fez com que Félix propusesse para a escola onde trabalha uma iniciativa do gênero. "Achei que cabia perfeitamente na proposta educacional do Dante."

A escola topou. Lá, são 545 refeições por dia, o que representa 150 kg de resíduo orgânico. Foram comprados então 10 kits de minhocários, onde são compostados diariamente de 70 a 80 kg do total.

"Os ganhos são muitos. Você consegue mudar os hábitos, quando envolve a área pedagógica", diz Félix. Resolvido o problema dos resíduos orgânicos, apareceu um novo elemento: o composto orgânico. O que fazer com ele? "O diretor da escola resolveu fazer uma horta no telhado", conta.

Nela, são plantados beterraba, cenoura, couve e alface. Todo o resultado do cultivo é doado. "É o ciclo se fechando", diz Félix. "E tudo começa lá atrás, com a separação adequada. Fazendo a separação, você vê que não existe lixo."

É nas aulas de biologia do Dante que os estudantes têm contato com o tema. "O Brasil é um dos países que mais usa agrotóxico e o adubo orgânico poderia ser uma solução para mudar isso", diz a aluna Gabriela Marcondes, do sétimo ano.

ECONOMIA

Uma solução para cortar custos era o que procurava, há dois anos, Marcelo Moura, da Cecil Metalurgia, localizada em Cotia [a 35 km de São Paulo]. A empresa gastava muito com os resíduos do restaurante dos funcionários, que serve 500 refeições por dia.

O lixeiro tinha de passar duas ou três vezes por semana. Para aguardar essa coleta, o material residual tinha de ficar acondicionado em um freezer, de forma a evitar decomposição e mau cheiro. Estudaram algumas alternativas. A incineração foi descartada por causa do grave dano ambiental que causaria.

"Fomos procurar um sistema em consonância com a ecologia", conta Moura. "Chegamos na Morada da Floresta, que desenvolveu um programa". "O que é fantástico é que não temos que mandar nada para fora daqui, onde poderia gerar poluição", diz Marcelo.

"Hoje temos 33 torres de compostagem, para o gasto diário. Desde a implantação, em 2010, já foram mais de 30 toneladas para fazer composto. O produto, a gente espalha entre as árvores". A mão de obra é muito pequena, afirma ele.

E a redução de gastos foi significativa. "Gastávamos R$ 3.000 por mês e passamos para R$ 500. O investimento se pagou em menos de um ano", conta. "Precisava ter uma legislação que obrigasse as pessoas a fazerem isso. Porque é muito mais razoável. O poder público só recolheria os recicláveis e seria o fim dos caminhões com cheiro ruim."


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