Folha de S. Paulo


Administradora cria movimento para incentivar microdoações para ONGs

"Você quer doar o seu troco de R$ 0,19 para a ONG SOS Mata Atlântica?", escuta a dona de casa Carla Camargo, 32, no Pão de Açúcar Minuto da rua Cardoso de Almeida, zona oeste paulistana.

Por mais que esteja meio combalida pelo cansaço de ter feito as compras da semana e pelo rosário de perguntas da operadora de caixa ("CPF na nota?", "Quer nota fiscal paulista?", "É cliente Mais?" e "Deseja colocar crédito no celular?"), ela pensa por um segundo: "Sim. É claro".

Essa é a ideia do movimento criado por Nina Valentini, 29. A paulista, formada em administração pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), é a diretora do Instituto Arredondar, que nasceu para permitir legalmente e incentivar microdoações no Brasil.

Conheça o Arredondar

"Eu acredito que o sentido de doar é você ser coautor de uma história", resume a administradora que virou empreendedora social.

O Arredondar é um catalisador que une grandes lojas, como Cori, Puket e Spoleto, com ONGs, como Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), e institutos, como Ayrton Senna e Fazendo História, finalistas do Prêmio Empreendedor Social em 2005 e 2011, respectivamente.

Atualmente, o Arredondar consegue captar uma média de 10 mil doações diárias.

O envolvimento de Nina com a área social vem de berço. Seu pai, o psiquiatra Willians Valentini, coordenou o Hospital Cândido Ferreira, em Campinas (SP), durante a infância e a adolescência da futura empreendedora social. Valentini frequentava o trabalho paterno, tendo contato com pessoas em situação de vulnerabilidade e com a militância antimanicomial.

A mãe, Cenise Monte Vicente, é mestre em psicologia social e trabalhou por décadas no setor público na área da infância e de direitos humanos. Ocupou cargos no Instituto Ayrton Senna e no Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

O envolvimento da família com questões sociais influenciou até as férias em família. "Em vez de ir para a Disney, minha mãe me mandou para o vale do Jequitinhonha, onde passei um mês acompanhando o trabalho de Tião Rocha", conta Nina, sobre a viagem formadora que fez à região mais pobre de Minas Gerais na adolescência.

Lá, conheceu Tião, figura emblemática à frente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento e vencedor do Prêmio Empreendedor Social de 2007. A semente foi plantada, mas antes de mergulhar no terceiro setor, Nina se aventurou em outras searas, após concluir a faculdade.

CONVITE IRRECUSÁVEL

Aos 24, estava na sua segunda passagem por uma consultoria que atendia, entre outros clientes, o governo. Pediu demissão às 10h.

"Eu achava legal, mas gosto muito da execução, de ver resultados acontecendo. Percebi que não era nem ali nem com o governo que eu queria trabalhar." Às 18h do mesmo dia recebeu uma ligação de Ari Weinfeld, 57, que viraria seu sócio no Arredondar.

Ele havia acabado de vender sua indústria têxtil. Após ler o livro "Financing Future", da ex-diretora do Banco Mundial Maritta Koch Weser e de Tatiana Van Lier, decidiu empreender no terceiro setor.

Valentini foi recomendada por um dos conselheiros. Convidou-a para começar algo novo. "Quero ver se uma ideia que tenho é viável." Ele a entrevistou para a vaga, e vice-versa: "Queria saber se ele acreditava naquilo", diz.

Um dos maiores desafios que a dupla enfrentou para colocar a ideia do Arredondar em prática foi convencer os clientes a dar seu dinheiro, por mais que fosse pouco.

Para isso, investiram no treinamento dos funcionários em contato com doadores.

Fizeram um jogo de tabuleiro, com todos os entraves que podem acontecer na boca do caixa. "Por que o dono da empresa, que é tão rico, não doa?", ou "Como vou ter certeza de que não vão roubar meu dinheiro?" -a resposta, escrita num cartão, é que, com o comprovante em mãos, o doador pode conferir no site para onde foi cada centavo.

"Por mais que sejamos ONG, trabalhamos com ferramentas de mercado. E o varejo tem milhões de clientes ao mesmo tempo", diz a diretora, de fala rápida e movimentos abundantes -ela derrubou um copo d'água enquanto falava com a Folha. Weinfeld brincou: "São vários por dia".

Mas a benemerência é levada a sério por ali: "Espero que essa pequena doação seja uma porta de entrada para outros engajamentos que podem surgir", diz Valentini.

Hoje, o Arredondar funciona num dos poucos predinhos de quatro andares que ainda não deram lugar a lançamentos residenciais em Pinheiros, na zona oeste de SP.

São quatro funcionários contratados e três voluntários trabalhando no escritório, projetado por Isay Weinfeld, responsável por projetos como o Fasano paulistano, e irmão de Ari. O orçamento é de R$ 800 mil para este ano.

Em junho, o projeto foi um dos quatro vencedores do Desafio Social Google 2016, que rendeu R$ 1,5 milhão de incentivo ao Arredondar.

A expectativa é que haja um salto orçamentário em meio à crise. Recentemente fecharam com o Extra e negociam com outras empresas do Grupo Pão de Açúcar, como o atacadista Assaí. Estão para lançar uma tecnologia nova para poder operar também em lojas virtuais.

A empreendedora ainda tem planos artísticos. Está finalizando o documentário "Entre Mundos", que mostra práticas de impacto social em todo o planeta. A ideia nasceu quando tinha 19 anos e, com colegas de faculdade fascinados pelo sistema de microcrédito criado na Ásia por Muhammad Yunus, fundou um grupo de estudo.

Discutiam, toda sexta à noite, temas de negócios de impacto social de que pouco ouviam falar na sala de aula. "Propus fazer um documentário. Mas bem na raça."

ON THE ROAD

Lá foi ela estudar na Academia Internacional de Cinema, em SP. Em 2008, viajou para Índia e México para gravar o documentário. "Entrevistamos os maiores especialistas sobre o tema, de Yunus a professores de Harvard."
Mas enveredar para uma carreira de cineasta não está nos seus planos. "Não existe nada melhor do que fazer um filme para aprender sobre um tema." Ela usou as lições sobre empreendedorismo social e a rede de conhecidos que fez na faculdade para colocar em pé seu negócio.

Um dos colegas de FGV e de documentário foi Antônio Ermírio de Morais Neto, herdeiro do grupo Votorantim, que também enveredou pelo empreendedorismo social. Criou o Vox Capital, fundo que investe em negócios de impacto social. Antonio é irmão de Flávio, que se tornaria marido de Valentini.

Grávida de seis meses do primeiro filho do casal, previsto para fevereiro, a empreendedora social ouve muito se pretende parar de trabalhar com sete ou oito meses de gestação. É Weinfeld, o homem que a convocou para criar impacto social, que responde: "Parar? Você não conhece essa mulher".

Nina já é mãe de uma ideia. "Mais de 2 milhões de pessoas arredondaram e estamos expandindo o projeto para todo o Brasil. Cada centavo doado é acompanhado em tempo real no site", afirma. E cita o líder indiano Mahatma Gandhi: "De um modo suave, nós podemos sacudir o mundo".


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