Folha de S. Paulo


Jovens da Amazônia se apaixonam pela leitura após ganharem bibliotecas

O barco com as fundadoras da Associação Vaga Lume e seus acompanhantes se aproxima do porto do município de Breves (PA) quando começa os gritos de uma recepção calorosa: "Ume! Ume! Ume! Eu sou Vaga Lume!"

A equipe local aguardava o pessoal de São Paulo em festa com balões, faixas e camisetas confeccionadas especialmente para a ocasião, para iniciar, dali a algumas horas, a Expedição Vaga Lume - 15 anos.
A iniciativa comemorava os feitos e os ganhos sociais da organização nos municípios amazônicos.

A partir de uma metodologia própria, a Vaga Lume oferece estrutura, formação e apoio à autogestão de bibliotecas comunitárias, que se tornam equipamentos de desenvolvimento local para 159 comunidades da Amazônia.

A Folha percorreu, ao lado da equipe organizadora da expedição, doze horas de barco da capital Belém até Breves, um município de pouco menos de 100 mil habitantes, ao sul da Ilha do Marajó, onde a floresta impera.

A expedições para locais isolados no meio da Amazônia, que se multiplicaram por nove Estados brasileiros, começaram em 2002, quando a trupe da Vaga Lume embarcou pela primeira vez para comunidades rurais da Amazônia Legal. A logística é complicada e os poucos títulos que lá chegam, além dos da Vaga Lume, são didáticos, fornecidos pelo governo federal.

Três das 293 escolas de Breves receberam uma biblioteca Vaga Lume, em 2010. A chegada na região foi uma replicação do trabalho iniciado em 2002, em Portel, cidade vizinha.

"Fiquei muito satisfeita com o trabalho de formação e engajamento dos voluntários da equipe local. Mostra que o projeto tem uma legitimidade", afirma a presidente da Vaga Lume, Sylvia Guimarães, finalista do Prêmio Empreendedor Social em 2013.

A recepção continuou na Semed (Secretaria Municipal de Educação), com muitos quitutes –suco de abricó, pequi e cupuaçu, além da tapioquinha e bolo de tapioca– e cultura local, como a apresentação de dança Carimbó.

AMAZÔNIA A DENTRO

Dali, a Expedição Vaga Lume 15 anos partiu, com mais de 20 pessoas, entre as fundadoras, equipe, parceiro locais, educadora e acompanhantes, para três dias embarcados. Um para cada comunidade de Breves: Manancial Celeste, São Miguel dos Macacos e Vila Dias.

No barco, as redes se cruzavam para poder acomodar a todos. Saindo de Breves, não demora muito para o sinal do celular desaparecer –e assim permanecer durante os quatro dias da expedição.

O piloto não possuía GPS e levou a equipe certeiramente para Manancial Celeste. A missão parece impossível para qualquer forasteiro. Quando o rio se transforma em estrada, não há as sinalizações costumeiras, nem placas mostrando que tal comunidade está à direita ou esquerda da bifurcação.

As três comunidades visitadas possuem algumas características em comum: forte influência religiosa, alta evasão de jovens atrás de oportunidades e grande dependência da indústria madeireira. Após a instalação das bibliotecas, agora, as três dividem mais um ponto em comum: reconhecem a importância da leitura.

Em Manancial Celeste, a influência religiosa foi mais evidente. A recepção calorosa permeou toda a viagem, sempre com um bufê de variedades regionais muito bem elaborado –tapioca, tacacá, tucupi, entre outras iguarias lá plantadas.

Nessa comunidade, os alunos organizaram uma apresentação de teatro local e dança, com direito ao famoso "passinho" dos ritmos de funk, mas em versão gospel.

Na visita à biblioteca, constaram-se dificuldades além da estrutural. "As pessoas que solicitaram a biblioteca não estão mais lá", explica Sylvia Guimarães.

A moradora Nelceli de Araújo, 41, herdou a incumbência de cuidar do projeto quando a cunhada casou e foi embora. Funcionando dois dias na semana, a biblioteca estava parada. "Quase entreguei, mas duas meninas começaram a trabalhar", relata.

O professor Michael Coelho, 32, leciona na comunidade desde o início deste ano. Assim que descobriu a biblioteca, passou a utilizá-la como atividade complementar em suas aulas. "Os alunos têm necessidade, vontade de ler até para não ficar ocioso e ir trabalhar", diz.

A biblioteca que mais se destacou, segundo a avaliação de Sylvia, foi a Cantinho da Alegria, em São Miguel dos Macacos, visitada na sequência. Ainda que tenha finalizado sua sede na manhã do sábado (18/9) em que a equipe chegou, foi onde notou-se um maior engajamento.

"Os professores e voluntários são moradores [de São Miguel dos Macacos]", explica a presidente da associação.

PAIXÃO PELA LEITURA

Fabrício Pereira, 17, é voluntário na biblioteca na comunidade desde seu início e desenvolveu o gosto pelos livros. "Me sinto outra pessoa quando estou lendo", conta. Ele lê para os avós e incentivou outras crianças a seguirem seus passos.

O jovem reconhece como a leitura mudou sua vida. "Antes da biblioteca, eu ia jogar bola, dormir depois da aula. Agora, vou para a biblioteca", conta. Por falta de uma escola de ensino médio, Fabrício teve que parar de estudar.

"Me entristeceu muito ficar dois anos parados. Quero estudar para ser policial em Breves", afirma.

Quem o trouxe para a biblioteca há cinco anos foi Jesus de Nazaré Vieira, 39, professora da escola Marechal Rondon e voluntária. "Tenho alunas que já estão na universidade. Me orgulho muito de ter colaborado para isso", conta.

Para Jesus, além da dificuldade de acesso às tecnologias, a comunidade tem um desafio estrutural. "Existe uma escassez dos recursos didáticos", diz.

Nas três comunidades, as aulas concorrem com o dinheiro. Seja em madeireira ou subindo açaí, os jovens veem ali uma oportunidade de ganhar alguma renda para si.

Na última parada, no entanto, a presença de ocupações extracurriculares ficou mais evidente. A Vila Dias é de propriedade de uma madeireira e, quem não está na escola, trabalha lá.

Ainda assim, a professora Valdene Gama, 43, relata a alegria de ter lá uma biblioteca da Vaga Lume. "O dia da chegada dos livros foi uma festa."

Luana Duarte, 20, é voluntária e passou a gostar dos livros quando eles deixaram de ser didáticos. A jovem relata, contente, a evolução das crianças. "Melhorou a leitura. Eles não gaguejam e agora interpretam."

A presidente da associação reconheceu o trabalho realizado no povoado, "mas não é o perfil comunitário que a Vaga Lume tem vocação", explica.

Para Sylvia, o projeto tem um espaço muito grande para crescer, se tiver apoio e interesse da sociedade. "Tem uma fragilidade na equipe local. O apoio só da prefeitura, secretaria [de educação] é pouco", diz. "Precisa ter mais parceiros no município", conclui.

A repórter Patricia Pamplona viajou a convite da associação Vaga Lume.


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