Folha de S. Paulo


Após câncer, garotas ganham baile de debutantes em 'noite de Cinderela'

A sala de reuniões estava cheia de meninas, acompanhadas de suas mães, em meio às férias de julho. A organizadora perguntou: "Quem aqui já fez 15 anos?" Meia dúzia de garotas levantou a mão. "Então, nem precisa fazer festa!" Uma das adolescentes protestou "Oxe!"

As jovens estavam lá para a primeira reunião do baile de debutantes tradicionalmente promovido a cada ano pelo Projeto Felicidade, fundado em 2001 e dirigido atualmente por Flávia Bochernitsan, 58.

Além da idade, as meninas compartilham uma mesma história: travaram ou estão em meio à batalha contra o câncer durante a infância ou adolescência.

Ao olhar para Mayra Natali, 14, durante a reunião, não se percebe que a jovem ainda trata uma leucemia, diagnosticada há quatro anos.

Depois de apresentar diversos hematomas pelo corpo e uma dor intensa na perna, sua mãe, Rose, a levou ao AMA (Assistência Médica Ambulatorial) próximo a sua casa. O exame de sangue fez com que o médico a encaminhasse para um hospital, onde a LMC (Leucemia Mieloide Crônica) foi constatada.

"No início eu fiquei muito abalada", relata a jovem, que controla a doença através de remédios. A mãe agradece, com a voz embargada, a ajuda recebida do projeto. "Fico muito emocionada com a preocupação e dedicação."

Enquanto aguardava o início da reunião, Mayra demonstrava a ansiedade que a deixara em claro a noite anterior. "Quanto tem alguma coisa grande assim, eu não consigo dormir", afirma a jovem.

Nesse primeiro encontro, as meninas também fizeram as medidas para os vestidos e preencheram uma ficha com seus dados e suas preferências do que seria uma festa de sonhos.

Enquanto distribuía os papéis, Flávia atiçou: "Qual cor de vestido vocês querem?" Todas responderam ao mesmo tempo. "Azul!" "Branco!" "Tudo menos rosa", exigiu Michelly.

"É uma festa para elas. Não sou eu que estou dando", explica Miriam Catib, 34, sócia do Fiorelo Buffet, que levou a ideia de presentear meninas que tiveram ou ainda estão em tratamento contra a doença. A iniciativa completa cinco anos em 18 de outubro.

Apesar do protocolo inicial ser sempre o mesmo, com valsa e apresentação das debutantes, "depois que a pista abre, o baile é delas", afirma Miriam.

Depois de sete anos à frente do negócio de festas, ela encontrou na comemoração uma forma de revolver uma inquietude. "Desde o início, eu sentia falta de fazer algo pelo social, mas não sabia como."

Miriam organizava sua festa de 30 anos, com vários serviços oferecidos por parceiros. "No meio do caminho me deu um estalo. Desisti de fazer a minha e pensei em fazer para quem precisa."

Chegou ao Projeto Felicidade com a ideia de levar pacientes em tratamento para outra realidade: a da diversão.

A emoção sentida por Flávia e Miriam em viabilizar a festa de debutante é a mesma das mães e aniversariantes. "Eu ouço gritinhos no telefone. Tem mãe que chora", conta Flávia.

Isadora Silva, 14, foi uma das que gritou ao receber a ligação de Flávia. Depois de vencer um tumor cerebral em 2013, participou do projeto e ainda escreve para a diretora. Fez amigos e acompanha a vida de cada um.

Na reunião, ela era uma das nove meninas que ganhará o baile de debutantes neste ano. Algumas são tímidas, mas todas esbanjam um sorriso ao ouvir os detalhes da festa.

TUDO PARA ELAS

O vestido de princesa usado no baile é fornecido por um dos parceiros de Miriam e fica para cada uma das meninas. Essa foi uma exigência de Flávia quando trataram do projeto pela primeira vez.

As debutantes ganham maquiagem, penteado e manicure em salão de beleza, em Higienópolis. As mães também fazem penteado e maquiagem, tudo dado pelo Helmuth Coiffure.

"Eu falo que é o 'efeito Cinderela'. Elas se encontram no projeto e vêm de van até o salão. Depois de prontas, tem uma limousine esperando", relata Miriam.

Ao chegar ao bufê, nenhuma delas sabe o que virá pela frente quando as portas do salão se abrirem. Miriam diz que as meninas não são informadas do que terá na festa e "cada momento é uma surpresa".

Isabela Morais, 17, passou por essa euforia em 2013. Ela ainda lembra o dia exato de seu diagnóstico de um tipo raro de câncer, a LLA (Leucemia Linfoide Aguda), em 30 de junho de 2010.

Seu tratamento foi tratamento longo e se encerrou em meados de julho de 2012. "Cada sessão de quimioterapia era uma complicação diferente", recorda-se ela.

Como a jovem diz, "depois do fim do tratamento, foram só notícias boas". Foi debutante em 2013. "Foi surreal. Eu vi a perfeição em cada detalhe." Ela não esperava que a festa de aniversário organizada pelo projeto seria justamente a de 15 anos.

A festa também veio depois de um diagnóstico de leucemia para Paloma Soares, 17, que relata o apoio da família como fundamental para a superação da doença. Ela foi uma das debutantes de 2012 do Projeto Felicidade, quando o príncipe da festa foi Pedro Cassiano, ator da Record. "Foi a melhor parte", avalia a jovem, que foi surpreendida com um baile com tudo que tinha direito.

Miriam agradece o empenho dos fornecedores que apoiam a iniciativa em realizar um evento perfeito. "Bolo, docinhos, salgadinho, carne, massa, flores, foto e vídeo, DJ, é tudo dos parceiros", lista a organizadora.

Sua ideia, desde o princípio, era criar uma corrente do bem para bancar a festa orçada em torno de R$ 80 mil, com mais de 40 pessoas envolvidas. Miriam explica às meninas: "Vocês agora são clientes. A conta, deixa lá para cima."

FELICIDADE

Assim como na matéria pouco se lê sobre o que levou essas meninas ao projeto, quase nada se fala sobre doença durante a organização e realização da festa. Miriam explica: "Às vezes, quando vamos fazer a prova do vestido, a mãe comenta o tratamento, mas esse não é o foco. O foco é felicidade."

No caso de Giovana, 14, é fechar um ciclo. "Há três anos ela vem criando expectativa. É o sonho dela", conta Edite Moura, 34, mãe da adolescente, que já superou o tratamento. Para elas, a doença faz parte de um passado já encerrado. Agora, é festa.


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