Folha de S. Paulo


Refugiados da Síria e do Congo sobrevivem como professores de inglês

"Foi um pesadelo viajar durante a guerra civil. Não consigo lembrar de todos os detalhes daquele dia. Nós acordamos em meio a um bombardeio e tivemos que sair às pressas, não deu para pegar todas as nossas coisas."

O relato é de Wessam Alkourdi, 33, que morava próximo a Damasco, capital da Síria, quando forças armadas tomaram seu bairro há dois anos.

"Tivemos que deixar um país muito bom. Antes da guerra, podíamos sair a qualquer hora, fazer qualquer coisa", relata.

Wessam fugiu com a mulher, ainda grávida, e chegou à Jordânia depois de fugir pelo Líbano. O filho de Wessam nasceu na Jordânia, onde moraram 1 ano e cinco meses até conseguir o visto para se mudar para São Paulo, em outubro de 2014.

O sírio faz parte das 2.320 solicitações de refúgio que Ministério da Justiça registrou no ano passado. Wessam é formado em administração de empresas, não fala português, mas estuda o idioma em uma escola particular.

Como morou dois anos na Inglaterra e outros dois nos EUA, domina o inglês e dá aulas de segunda a sexta-feira em uma escola na capital paulista.

Assim como ele, Alphonse Nyembo Wanyembo, 29, sobrevive em São Paulo como professor de inglês e veio para Brasil fugindo da guerra civil.

Nascido na República Democrática do Congo, na região do Lago Kivu, viu o conflito de perto quando tutsis massacrados em Ruanda e Uganda se refugiaram em seu país, em 1998.

Viajou sozinho em dezembro de 2012 por causa das dificuldades da viagem, como dinheiro para passagens.

"Conseguir chegar aqui é sorte." Em seu país, Alphonse trabalhava como jornalista e se formou em letras. Também dava aulas de inglês no Congo e fala o idioma oficial do país, francês, e o dialeto de sua região, suaíli.

Em São Paulo, Alphonse aprendeu português sozinho e fez um curso técnico de eletrônica no Senai. Foi nesse curso que o congolês fez amigos e recebeu ajuda tanto na língua portuguesa, como para estudar para o vestibular. "Eles me deram alguns livros de história, de literatura brasileira", lembra.

A partir do material emprestado, o congolês estudou sozinho para o vestibular e foi aprovado no curso de mecatrônica na FMU. Ele usa o dinheiro das aulas para pagar a faculdade.

Alphonse e Wessam serão dois de seis professores de idiomas da primeira edição do projeto Abraço Cultural - Curso com Refugiados, organizado pelas ONGs Atados e Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado).

Os alunos vão aprender, em níveis básico e intermediário, inglês, francês, árabe e espanhol. Os professores, também refugiados de Nigéria, Senegal, Colômbia e Haiti, receberão R$ 1.600 cada um pelo período.

O curso é um intensivo de quatro semanas no mês de julho, com aulas às segundas, quartas e sextas. Um dos fundadores da Atados, Daniel Assunção, 25, explica que o objetivo é a valorização da cultura.

"Vamos aprender francês, mas as partir da cultura do Congo e não a da França", explica, referindo-se à ex-colônia belga. "Vamos aprender inglês e árabe misturados à cultura síria."

Em suas aulas, Alphonse quer derrubar preconceitos contra estrangeiros: "A ideia é aproximar os brasileiros dos imigrantes que vieram aqui em busca de uma vida normal para que todo possam viver juntos".

Ele também vê no curso uma maneira de os alunos conhecerem mais sobre a África. "O Brasil é um país muito fechado em si, as pessoas não se interessam por outras culturas", critica.

Seu colega sírio também pretende compartilhar sua rica cultura com os brasileiros. "O primeiro registro de nota musical no mundo foi encontrado na Síria, você sabia?", indaga. Além da música, que estudou na Academia Russa de Damasco, o professor vai falar sobre artes para ensinar inglês.

O CURSO

A ideia do projeto veio de outra parceria da Atados com a Adus. Em 2014, eles organizaram a Copa do Mundo dos Refugiados ao mesmo tempo em ocorria que a Copa do Mundo FIFA no Brasil.

A partir do evento, diferentes pessoas procuram as ONGs para ajudar os imigrantes. "Pensamos em fazer algo mais recorrente [com os refugiados]", explica Assunção.

O cofundador também ressalta as dificuldades dos imigrantes serem reinseridos na sociedade. Apesar de ter dominado a língua portuguesa facilmente, Alphonse entende esses desafios.

"Quando você chega em um lugar pela primeira vez, você nasce de novo. Você tem que aprender muitas coisas, tem que se acostumar com pessoas", afirma.

O intensivo de idioma e cultura com Alphonse, Wessam e demais imigrantes será de 6 a 30 de julho, em Santa Cecília, centro de São Paulo.

Nas segundas e quartas, o aluno terá aulas teóricas. Já às sextas, para encerrar a semana, os professores vão compartilhar a culinária, a música, a dança e a política de seus países na sala de aula.

As inscrições já estão abertas e vão até 30 de junho, na sede da Atados ou pelo site.

Serviço
O quê: Abraço Cultural - Curso com Refugiados
Onde: BibliASPA - rua Baronesa de Itu, 639 - Santa Cecília
Quando: 6 a 30 de julho
Quanto: R$ 400
Inscrições: 19 de maio a 30 de junho pelo site na sede da Atados - rua Capote Valente, 701 - Pinheiros


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