Folha de S. Paulo


Dançando no escuro: bailarinas cegas vão participar de festival na Alemanha

Nascida em São José do Egito, no sertão de Pernambuco, Geyza Pereira, 29, via o sonho de ser bailarina distante de sua realidade. Aos nove anos, contraiu meningite e teve que viajar às pressas para São Paulo em busca da cura.

Desenganada pelos médicos, ela ficou internada na Santa Casa da capital paulista por quase um ano, à medida que sua situação se agravava: primeiro parou de andar; depois, perdeu totalmente a visão.

"Eu achava que era por causa dos remédios. Um dia, pedi para acenderem a luz e me disseram que estava acessa. Então, pedi para abrir a janela que também já estava aberta", relata. "Foi quando percebi que fiquei cega."

Geyza recobrou aos poucos os movimentos e voltou a andar, mas nunca recuperou a visão. Sua doença acabou forçando sua família a se mudar para São Paulo. Aos 10 anos, foi matriculada em uma escola especial, onde seria apresentada ao balé clássico por uma professora.

A bailarina Fernanda Bianchini, então com 15 anos, era voluntária e dava aulas de dança no Instituto de Cegos Padre Chico, na zona norte de SP.

Geyza foi integrante de sua primeira turma. Logo na aula inaugural, a professora percebeu o quão seria complexo a inclusão de alunas cegas.

"Para ensinar um passo, pedi para imaginarem um balde e uma menina disse: 'Tia, o que é um balde? Eu nunca vi um'. Foi neste momento que eu percebi que precisava entrar no mundo delas, entender as dificuldades e limitações", conta ela, 20 anos depois de ter iniciado aquela aventura à frente de uma turma que literalmente dançava no escuro.

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Motivada pelos pais e pelas alunas, a bailarina decidiu encarar o desafio e fez pós-graduação na área. No mestrado, publicou a técnica que desenvolveu para o ensino de balé para portadores de deficiência visual.

A metodologia permite que o deficiente visual aprenda a dançar tocando o corpo do professor para memorizar o movimento. O aprendizado é lento e árduo, mas com o tempo o aluno consegue fazer os passos apenas ouvindo instruções.

Assim, Fernanda fundou a associação que leva seu nome. Hoje, oferece ao lado de outras dez professoras aulas gratuitas de balé clássico, sapateado, dança de salão, expressão corporal, danças inclusivas e teatro para portadores de deficiências visuais, intelectuais, físicas e auditivas.

Para Geyza, mesmo após anos e anos de dedicação que a fizeram professora de balé, o equilíbrio exibido para realizar piruetas, por exemplo, continua sendo desafiador. "Dançar era muito difícil e ainda é. O mais complicado é trabalhar o ponto de firmeza do corpo. Meu grande problema é o giro."

Mas o esforço compensa. "O balé é a minha vida, foi ele que me transformou como pessoa. Dançar é estar fora da realidade", afirma.

Mais de 600 alunos passaram pela Associação Fernanda Bianchini ao longo de duas décadas. Estudantes como Verônica Batista, 25, que perdeu a visão na infância em razão de um tumor cerebral. "Dançar é uma descoberta de emoções. Quando eu enxergava, já via o balé como algo mágico", diz ela que também virou professora.

O projeto hoje conta com 120 alunos. Muitos deles se tornaram profissionais da dança, como Verônica e Geyza. Apesar das dificuldades financeiras para manter a associação, Fernanda não desanima."Muitas pessoas acreditam que o deficiente nunca estará em destaque e aqui a gente inverte os valores da sociedade. O impossível não existe", diz.

INTERNACIONAL
E uma das barreiras vencidas pelas bailarinas cegas foi a territorial. Um grupo passou uma temporada de estudo em Nova York. Elas já se apresentaram também em Buenos Aires e participaram do encerramento das Paraolimpíadas, de Londres. Agora, vão embarcar para a Alemanha.

Geyza, Verônica e outras oito bailarinas deficientes visuais vão para o Festival Farben des Tanzes, na cidade de Hagen. Fizeram uma campanha na internet para arrecadar R$ 45 mil necessários para bancar a viagem e participar de uma mostra especial voltada para diversos tipos de deficiência, ao lado de companhias europeias.

E a lição que Geyza e as colegas vão levar na bagagem para a Europa é que a dança virou possibilidade real de inclusão. "No começo, me falavam que o balé era para pessoas perfeitas. Mas não é, a dança é para todos. A melhor resposta ao preconceito é superar essas barreiras."


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