Folha de S. Paulo


Jovens de Alagoas criam app de tradução para língua de sinais

O trio já se arriscou na música. Ronaldo Tenório, 28, tocou bateria, e Thadeu Luz, 31, violão, em suas respectivas bandas. Carlos Wanderlan, 32, além de ter sido dono de um estúdio, já foi responsável pela logística dos shows do grupo de pagode do irmão.

Hoje, eles buscam atender a outro público, formado por quem convive com o silêncio.

Os três rapazes de Maceió (AL) são sócios da Hand Talk, cujo principal produto é um aplicativo gratuito que traduz o português para a Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) por meio de Hugo, um personagem animado em 3D.

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O funcionamento do app é simples: o usuário digita até 140 caracteres ou fala algo no microfone do celular. Hugo, com suas mãos grandes e braços compridos, reformula o recado na língua de sinais.

Em fevereiro do ano passado, antes mesmo de ser lançado, foi escolhido –entre 15 mil concorrentes de mais de cem países– o melhor aplicativo de inclusão social do mundo pela ONU (Organização das Nações Unidas). O trio recebeu o prêmio, chamado WSA-Mobile, em Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos).

Desde 3 de julho de 2013, quando foi lançado, já foram mais de 180 mil downloads, e há potencial para ir além. Segundo o último censo do IBGE, de 2010, existem no Brasil dez milhões de surdos.

Seis anos atrás, ao ter a ideia do projeto, Ronaldo não conhecia nenhum deficiente auditivo. Então estudante de publicidade, ele decidiu pesquisar sobre esse público após um professor pedir no primeiro dia de aula que os alunos criassem um produto. Suspeitava que havia pouca tecnologia para a acessibilidade dos deficientes auditivos.

Algumas aulas depois, apresentou sua ideia. "Era um computardorzinho que tinha uma câmera, uma coisa absurda." Sua invenção faria ouvintes e não ouvintes se comunicarem, mas Ronaldo não sabia como. Naquele momento, ele só precisava mostrar na aula um conceito.

Por quatro anos, sua criação "absurda" ficou na gaveta. Até que, em 2012, seu amigo Carlos, programador autodidata que acabara de terminar um curso de desenvolvimento de aplicativos, lhe telefonou pedindo uma ideia para lançar um app. Ronaldo, à época dono de uma agência de publicidade, desengavetou a sua.

Dois dias depois, o protótipo de um tradutor português-Libras estava pronto. Faltava só um personagem para dar vida aos sinais. "A gente precisava de alguém que fosse muito bom em animação 3D", lembra Carlos. Por indicação de amigos, chegaram a Thadeu, arquiteto que tinha feito curso de animação no Canadá.

DIFICULDADES
O embrião do Hand Talk foi mostrado em público pela primeira vez em agosto de 2012, em um desafio de start-ups na capital alagoana. "Na semana da apresentação, trabalhei cinco dias direto. Dormi umas duas horas", conta Carlos, o mais inquieto do trio.

O protótipo ficou pronto uma hora antes de ser apresentado e traduziu poucas frases, como "Eu amo minha sogra", logo acompanhada por: "É mentira".

Mas a ficha de que o projeto poderia ajudar as pessoas só caiu para Thadeu quando ele conheceu a história da psicóloga Jane Souza, 56, mãe de Jamilly, 28, jovem surda.

Jane foi pioneira no ensino de Libras em Maceió, muito antes da língua de sinais ser reconhecida como língua, em 2002. Ela chegou a abrir a primeira escola para surdos na cidade.

Para a psicóloga, se Jamilly tivesse nascido hoje, com uma ferramenta como o Hand Talk à disposição, as coisas teriam sido muito mais fáceis. Quando sua filha era pequena, os recursos de comunicação com os surdos eram tão desconhecidos que Jane sofria só de pensar se conseguiria fazer a menina entender que era amada.

"Toda vez que eu lembrava dessa história via que era crucial que a gente conseguisse fazer um produto bom", conta Thadeu.

Nos primeiros seis meses, a Hand Talk, que hoje conta com seis funcionários, entre os quais a própria Jamilly, fez mais de dez milhões de traduções. Mas ainda faltam alguns ajustes.

MELHORA NA TRADUÇÃO
Para Jeonne Tayrone Ferreira da Silva, 20, aluno surdo do terceiro ano do ensino médio da Escola Estadual Tavares Bastos, em Maceió, é preciso aumentar o vocabulário existente no aplicativo.

Ele usa o programa para falar com sua sogra e reclama que algumas traduções não são exatas.

Hoje, no app, cada palavra em português é ligada a um sinal. Uma série de regras programadas à mão reordena as frases do português para a gramática da Libras. "Eu vou para casa amanhã", por exemplo, pode ser reordenado para "amanhã casa ir".

Mas como existem muitas exceções em qualquer idioma, às vezes cria-se uma ambiguidade na tradução.

Um novo sistema está sendo desenvolvido pelos empreendedores. Nele, a tradução é feita pelo computador baseado em milhões de exemplos. Uma mesma palavra poderá ter sinais diferentes, dependendo do contexto. "O tradutor vai analisar estatisticamente a palavra, e decidir, baseado no contexto, qual sinal corresponde a ela naquela frase", explica Thadeu.

'VENDI UM GALETO'
As mensagens dos usuários mostram como o app é usado em situações prosaicas: "Hand Talk, muito obrigado, vendi um galeto hoje com a ajuda do Hugo", diz uma.

A corretora de imóveis Thaís Pinto Feitosa, 38, amiga de Carlos, baixou o app e correu para usá-lo no supermercado, para conversar com uma repositora de mercadorias, Lenice Gonçalves, que é surda.

"Há muito tempo queria conversar com ela, mas só conseguia fazer sinal de coraçãozinho." Conta ter dito à funcionária do mercado que a achava bonita. "A menina ficou feliz e empolgada", diz.

O plano dos empreendedores inclui uma maior participação na área de educação. "Mais de 600 mil tablets serão enviados para os professores em escolas públicas com o Hand Talk instalado. A nossa ideia é entrar de vez na educação", afirma Ronaldo. Eles querem ainda levar o aplicativo para os Estados Unidos em 2015.

Os três parecem ter encontrado na iniciativa o caminho que tanto buscavam. Ronaldo desistira da faculdade de ciência da computação no terceiro ano para se encontrar na publicidade. Conseguiu juntar tecnologia e comunicação em um único projeto. De espírito empreendedor, vendeu sua agência e agora afirma querer deixar um legado para a sociedade.

Carlos trancou "quatro ou cinco faculdades" e se sentia desmotivado trabalhando com desenvolvimento de sistemas na Secretaria da Saúde do Estado de Alagoas. Conseguiu fazer o app funcionar e largar o antigo emprego. Hoje, cursa computação gráfica, que espera terminar.

Thadeu, ao retornar do Canadá, se viu estudando para "qualquer concurso público". Faz hoje o que gosta de verdade: animação em 3D.

Na vida dos três, o personagem Hugo ocupou o espaço que a música, lá atrás, não foi capaz de preencher.


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