Folha de S. Paulo


Copa tem narração audiodescritiva para deficientes visuais

"De escanteio, Neymar na cobrança. A torcida agita. Faz a cobrança na área, cabeceou, David Luiz. É goooool!!! David Luiz. Desviou a bola, sobrou para David Luiz e ele fez o gol. O banco de reserva todo vai abraçar. A torcida levanta. A comissão técnica se abraça. É uma loucura o estádio! A torcida chilena calada!". Foi assim que Franco Malheiro, 24, narrou o gol do Brasil pelas oitavas de final da Copa do Mundo para um grupo de deficientes visuais, no estádio do Mineirão, em Minas Gerais.

A audiodescrição das partidas para os deficientes visuais é uma novidade no Brasil, trazida pela Fifa e pelo Comitê Organizador Local da Copa do Mundo. O projeto nasceu em parceria com duas ONGs, a europeia Cafe (Centro de Acesso ao Futebol na Europa) e a brasileira Urece Esporte e Cultura.

Mauana Simas/Urece
Eduardo Butter narra partida da Copa em audiodescrição no Maracanã
Eduardo Butter narra partida da Copa em audiodescrição no Maracanã

"A narração audiodescritiva tenta dar uma panorama bem completo não só do jogo, mas do ambiente. Narramos a bola rolando similar ao rádio, mas ficamos atentos às reações das torcidas e dos jogadores", diz a narradora e jornalista Gabriela Costa, 23. Ao lado de Malheiro, Gabriela é narradora oficial no Mineirão e pode reunir a paixão pelo esporte, o sonho de cobrir uma Copa do Mundo e desejo de realizar um trabalho social.

Com a técnica da audiodescrição, o narrador detalha informações visuais significativas, como linguagem corporal, expressão facial, lances, uniformes, cores e qualquer outra coisa importante para transmitir a aparência e o ambiente do estádio. "Não podemos só dizer que o Neymar sofreu uma falta, por exemplo, a gente descreve o lance, se o jogador está caído, com feição de dor", explica Gabriela.

Veja como é feita a narração audiodescritiva da Copa do Mundo:

Veja vídeo

A narração é transmitida por radiofrequência FM, captada em fones de ouvidos individuais, e pode ser ouvida de qualquer lugar do estádio e do seu entorno, sem a necessidade de uma área restrita aos deficientes. O sistema foi criado há 12 anos pelo jornalista Martin Zwischenberger, na Eurocopa.

Durante o Mundial, quatro estádios-sedes da competição tiveram o serviço: Itaquerão (São Paulo), Mineirão (Belo Horizonte), Nacional Mané Garrincha (Brasília) e Maracanã (Rio de Janeiro). A narração é feita de forma voluntária por 16 pessoas, duas duplas por estádio, que foram capacitadas e treinadas narrando partidas do Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil pelo Cafe e pela Urece.

Gabriel Mayr, 30, é coordenador do projeto pela Urece e narrador dos jogos no Maracanã. Ele diz que a narração de rádio normal tem muita estatística, anúncio e opinião, diferente da audiodescrição.

Segundo Mayr, a dificuldade da audiodescrição é manter o ritmo, por haver muita informação para transmitir. Para facilitar, em cada jogo dois voluntários narram, enquanto o outro vai apontando algum ponto importante da partida. A cada três minutos, eles revezam o microfone.

Para Gabriela, a maior dificuldade foi narrar o trágico fim da seleção brasileira na competição. "Eu narrei três gols seguidos, não teve tempo de trocar. Minha vontade era sair daqui, me livrar. Foi um teste, tínhamos um compromisso com quem estava nos escutando, mas somos torcedores, temos paixão."

"Quando a 'ola' está chegando tem o som parecido com o de uma briga e a gente fala que está em tal setor e se dirigindo para tal setor para que eles possam participar ", diz Mayr. O gol fica em "segundo plano", é narrado de forma mais curta para dar evidência às reações das pessoas e ao clima no estádio.

EXPERIÊNCIA
Daniel Batista Santos Pereira, 9, perdeu a visão há um ano e meio devido ao agravamento de um problema de saúde. O pequeno atleticano teve a oportunidade de acompanhar pela primeira vez uma partida da seleção, na disputa contra o Chile, além de presenciar o jogo entre Argentina e Irã, ambas as partidas no Mineirão.

"O Daniel vibrou muito e participou como um torcedor comum", conta o pai de Daniel, o cinegrafista Anderson Sucote, 38. Daniel tem deficiência auditiva e precisou de um aparelho especial para captar as emoções da partida.

"Acompanhei todos os movimentos como se estivesse vendo", diz o massagista Ataualpa Almeida, 27, que perdeu a visão logo após o nascimento. Torcedor do Atlético Mineiro, Almeida assistiu a goleada histórica alemã em cima da Seleção Brasileira, no Mineirão. Sobre o projeto, ele não tem dúvidas: "é um legado para a gente".

O equipamento de narração instalado em cada estádio para o Mundial será doado após a competição às entidades locais dispostas a dar continuidade na audiodescrição.


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