Folha de S. Paulo


Ex-jogadoras se unem para combater preconceito no futebol feminino

OLÍVIA FREITAS
PAULA LEITE
DE SÃO PAULO

Para combater o preconceito de gênero no futebol feminino, a norte-americana e ex-jogadora do Santos Caitlin Fisher, 31, e a ex-capitã da seleção feminina de futebol Alline Pellegrino, 31, se uniram em um projeto internacional que leva consciência crítica e reflexão às comunidades.

A iniciativa nasceu durante a Copa do Mundo de Futebol Feminino, em 2011, na Alemanha, em uma exposição multimídia organizada por Caitlin, Aline e pela fotógrafa Adrienne Grunwald, que mostrava o preconceito que as brasileiras sofrem no futebol. "É para as pessoas saberem como é dentro do Brasil, acham que tem muito apoio por causa da Marta [jogadora da seleção brasileira eleita pela Fifa por cinco anos seguidos como a melhor do mundo]", conta Caitlin.

Divulgação/Guerreiras Project
Jogadoras integrantes do Guerreiras Project durante evento em escolinha de futebol
Jogadoras integrantes do Guerreiras Project durante evento em escolinha de futebol

A ideia foi batizada de Guerreiras Project, fazendo analogias com as dificuldades enfrentadas pelas jogadoras no país. "Vamos às comunidades e nas escolas de futsal levar nossas histórias e usar isso para abrir diálogo com os técnicos, os pais e as jogadoras", explica a cofundadora Caitlin.

As embaixadoras, como são chamadas as jogadoras que integram o projeto, compõem um time de 11 mulheres que elaboram oficinas gratuitas para meninas de comunidades e escolinhas de futebol. Além de tratarem sobre as dificuldades no esporte, elas abordam o preconceito de gênero no futebol e ainda batem uma bola com as alunas.

Somente no ano passado, as Guerreiras realizaram oficinas em oito favelas do Rio de Janeiro, na periferia de São Paulo e em Recife. Caitlin e Aline também capacitam outras jogadores brasileiras para que possam integrar o projeto e replicar a iniciativa em comunidades pelo Brasil.

Além das atletas, o time das Guerreiras é formado por artistas, acadêmicos e ativistas que, juntos, realizam oficinas, sessões de formação, exposições, pesquisas, espetáculos e apresentações com intuito de combater os preconceitos no futebol feminino. "A nossa motivação maior é entender o preconceito contra o futebol feminino no Brasil e no mundo", afirma Caitlin.

As ex-jogadoras já comemoram os resultados do projeto. "Fomos em uma escolinha em maio de 2012, o time era misto e tinha quatro ou cinco meninas. Voltamos em novembro, o técnico disse que o exemplo foi tanto que as meninas pediram para montar um time feminino. Hoje, são 20 jogando", diz Caitlin. "Vimos o poder que temos que temos para mudar as coisas", completa.

EXPERIÊNCIA PRÓPRIA

Caitlin Fisher, nascida em Massachusetts, nos Estados Unidos, começou a jogar futebol aos seis anos. Foi capitã do time da Universidade de Harvard, onde se formou em antropologia, depois teve passagens pelo Boston Renegades (EUA), duas atuações no Santos (2004 a 2005 e 2010), também jogou na Suécia e na Inglaterra.

Já no Brasil, a jogadora se deparou com uma realidade que não imaginava: o preconceito e as dificuldades das mulheres no futebol.

Foi o que a motivou a estudar a causa em seu mestrado de gênero e desenvolvimento internacional na London School of Economics.

"Eu queria saber se as cabeças e as normas da cultura machista estão mudando ou se outra coisa está acontecendo", conta. Na sua volta ao Brasil, em 2010, Caitlin deu continuidade à sua pesquisa em campo, entrevistando técnicos, jogadores e familiares. "No Brasil, a descriminação é muito forte, mas parece invisível e aceitada", acredita.

Quando Caitlin ainda atuava pelo Santos, a diretoria do clube encerrou as atividades do time feminino de futebol e do futsal masculino. "Acabou o time por causa do salário do Neymar em janeiro de 2012. Não foi culpa dele claro, mas o clube tinha que aumentar em 10 vezes o salário dele para segurá-lo".

PRECONCEITO HISTÓRICO

"As principais formas de preconceitos são a segregação, o cerceamento em determinadas práticas esportivas, erotização da mulher e vigilância sobre a identidade de gênero", foi o que apontou o levantamento feito pelo doutorando em educação física pela Universidade Federal da Paraíba Fábio Luís Santos Teixeira.

Segundo Teixeira, o preconceito parte da ideia de "sexo frágil" que historicamente a sociedade impôs sobre as mulheres. "O futebol feminino era famoso e praticado até o começo do século passado no Brasil. Mas tivemos várias interversões institucionais e estatais que se apoiaram na medicina para fundamentar a ideia de 'sexo frágil' e começou-se a acreditar que não era adequado à fisiologia feminina", conta.

Uma pesquisa realizada em São Paulo, apontou que 57% das jogadores entre 16 a 21 anos disseram que o preconceito é a principal causa de estresse no futebol. Já para as atletas entre 22 e 27 anos, o problema foi relatado por 50% delas. O que pode levar ao abandono da profissão. Foi o que mostrou a pesquisa de doutorado de Jorge knijnik, professor da Universidade de Western Sydney, na Austrália.

"Esporte é um direito social previsto nas convenções de Direitos Humanos da ONU. Com o reforço do preconceito e, sobretudo, com a discriminação que impede que mulheres ou meninas joguem futebol, está se atentando contra um direito humano", afirma Knijnik.

Kniknik acredita que a Copa do Mundo ajudará em mais aceitação do futebol feminino no país. "Uma medida concreta seria obrigar todos os clubes de futebol, da séria A e B, manterem departamentos de futebol para mulheres. Esses clubes recebem milhões em verbas públicas, devem ser forçados a aplicar uma porcentagem no futebol feminino".

Durante o governo de Getúlio Vargas (1937-1945) foi implantado o decreto 3.199 que proibiu mulheres de praticarem esportes considerados pela medicina como incompatíveis às condições físicas delas.

Até a Ditadura Militar (1964 - 1985) o esporte era considerado "proibido", mas foi nessa mesma época que o decreto foi regulamentado e só revogado em 1979 pela Confederação Brasileira de Desportos, porém, somente liberava as mulheres para participarem de eventos, como grandes festivais, em estádio, não competições.

"Isso causou um mau desenvolvimento no futebol feminino no Brasil. É uma cultura paternalista do que a mulher tem que ser", considera Teixeira. Somente em 1983 o futebol feminino foi regulamentado no país.


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