Folha de S. Paulo


Ação imediata evita trauma infantil, diz 'pai' da pedagogia da emergência

Intervenções no tempo certo podem evitar traumas até em crianças que passam por situações extremas como guerras e catástrofes naturais, afirma o alemão Bernd Ruf, 62. Ele fala com conhecimento de causa.

Criador da chamada pedagogia da emergência, já dirigiu ações em 18 países –na Faixa de Gaza, no Haiti pós-terremoto e no Japão pós-tsunami, na Europa com refugiados ou no centro de guerras. Agora, seu grupo está no norte do Iraque.

O método utiliza princípios da pedagogia Waldorf, com ênfase na utilização de recursos artísticos e corporais.

No Brasil, o grupo de pedagogia de emergência que segue seus preceitos trabalha com a formação de educadores e já planeja intervenções.

Recentemente, o alemão esteve em São Paulo durante formação de educadores, onde falou à Folha.

Fabio Braga/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 15-10-2016: XXXXXXX. Entrevista com o professor alemão Bernd Ruf, fundador da pedagogia de emergência, que utiliza recursos terapêuticos do brincar e das artes para ajudar crianças vítimas de guerras e de desastres naturais. Ele já dirigiu cerca de 50 intervenções internacionais de pedagogia de emergência, atuando em muitas das grandes tragédias dos últimos anos (Haiti, Nepal, Japão, Filipinas, Equador) e em zonas de conflito, como Gaza, Líbano e Curdistão/Iraque. (Foto: Fabio Braga/Folhapress, COTIDIANO).
O professor alemão Bernd Ruf, 62, criador da pedagogia da emergência

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Folha - Quais são os sintomas de uma criança que passa por uma situação traumática?
Bernd Ruf - Os sintomas variam muito de pessoa para pessoa, mas podemos falar de alguns mais comuns. A musculatura da face fica enrijecida, os olhos, arregalados, e a pele, pálida.
Há ainda medo e tristeza, que pode virar depressão, raiva e agressão a si mesmo e aos outros. Estão presentes dificuldade de dormir, de se concentrar e de estar presente no momento. Podem aparecer doenças como asma e dificuldades imensas de aprendizado. A criança fica tão presa no passado que não consegue ver o futuro. Há dificuldade de lembrar de certas coisas, mas também há flashbacks, uma forma peculiar de lembrança acionada por um gatilho.

Como isso ocorre?
No momento em que a pessoa tem um flashback, não sabe diferenciá-lo da realidade. Um exemplo é um garoto com quem trabalhamos na China. Um dia, ele veio feliz em nossa direção, mas, quando demos a mão para ele, o garoto teve uma espécie de surto.
Depois descobrimos que, no momento em que ele foi dar a mão ao professor, houve o terremoto que deixou o garoto dias soterrado. Tudo pode virar um gatilho. Sons, movimentos, cores e locais.

E os distúrbios sociais?
As crianças podem demonstrar muita oposição em tudo, fazer muito vandalismo, ter uma sexualização precoce e dificuldade de aceitar limites. É um reflexo psíquico dessa ferida na alma: nada mais é o normal, não há mais regras.

A pedagogia da emergência trabalha com quatro fases do trauma. Quais são os sintomas de cada uma?
A primeira é a do choque. Aparecem as reações fisiológicas, como dor de cabeça e taquicardia. Dura de segundos até dois dias. Quando ela não passa, vem a segunda fase, da reação pós-traumática, que dura de quatro a oito semanas. Nela, aparecem os sintomas que citei anteriormente –claro que nem todos para todas as pessoas. Muitas vezes, eles somem com o tempo, e a ferida se cura por si própria. O problema é quando ela infecciona e vira doença. Aí, precisa ir no médico.

É nessa fase que a pedagogia de emergência atua?
O que ela se propõe a fazer tem a ver com as duas primeiras fases. São as fases que definem se a criança será curada com suas forças ou ajuda ou se ficará doente. A resposta dela depende de três fatores: o que aconteceu –traumas causados por pessoas são mais difíceis de curar do que traumas causados por eventos naturais; se a criança tem pessoas em que confia; quem é ela, o que ela já viveu, se teve experiência de vida que a permitiu passar por dificuldades e se fortalecer ou não; qual é a idade da criança (quanto mais nova, mais complicado); entre outros fatores.

Quais são as demais?
A terceira ocorre quando os sintomas não são tratados e viram uma doença mais séria. A quarta é mais rara. A gente a chama de mudança permanente de personalidade. É a fase em que a biografia da pessoa tem uma ruptura. Ela vira antissocial, delinquente, depressiva ou agressiva, tem vícios, pois precisa de droga para sentir alívio.

Como atuar em cada uma dessas fases?
Fazemos intervenções imediatas e de emergência para a primeira e segunda fase, para evitar que as crianças fiquem doentes. Se elas chegam à terceira ou quarta, podemos usar os métodos, mas elas vão precisar de mais ajuda terapêutica e médica. Nas duas primeiras, não. Hoje as pessoas até afirmam que ajuda psicológica na primeira e segunda fase tem sido contraprodutiva, e isso é fácil explicar: a gente faz terapia quando está doente, se a pessoa ainda não está, não tem por que fazer.

Como é a metodologia? A criança fala sobre o trauma?
Isso seria importante e, se a criança falar, a gente ouve. Mas pessoas traumatizadas muitas vezes não conseguem falar e forçá-las a isso pode fazer com que fiquem mais doentes. O que fazemos é dar a possibilidade de as crianças se expressarem sem necessariamente usar palavras.

Como isso acontece?
O trauma faz com que a parte física e a psíquica não funcionem mais em conjunto. Então usamos formas artísticas: pintar, desenhar, fazer músicas. É fácil também ver crianças que não conseguem mais entender o corpo como corpo. Trabalho com jovens refugiados da Síria na Alemanha que só conseguem perceber a cabeça. Fazemos trabalhos rítmicos, massagens, brincadeiras. Além disso, depois de um trauma, os ritmos da pessoa ficam confusos. A respiração trava, o batimento cardíaco fica irregular, perde-se a hora de dormir e acordar. Como fazer com que tudo volte a ter harmonia? Usamos jogos de bater palma, pular corda, cantar. Para competências sociais, trabalhamos muito com jogos de roda. Um círculo é um símbolo de harmonia, para fazê-lo preciso encontrar o meu lugar, e isso depende de quem está à minha direita e à minha esquerda. E o último exemplo é trabalhar a alegria. A alegria cura, fortalece o sistema imunológico, o estresse nos deixa doentes.

Esses princípios podem ser aplicados fora de áreas de guerra ou catástrofe natural?
Podem e devem. A gente não fica traumatizado só por guerras e catástrofes naturais, mas por acidentes, criminalidade, roubo, intervenções médicas, abuso sexual.

E quando o motivo do trauma permanece?
Talvez a cura só possa ocorrer se as crianças forem levadas a um local seguro, mas é preciso oferecer socorro também quando isso não é possível –sabendo que talvez não leve à cura, mas é um começo. Em muitas das intervenções que fizemos não havia condições ideais, mas nunca pensamos em não fazer. Se observamos como as crianças chegam, com o corpo enrijecido, e como depois de duas semanas conseguem sorrir e compartilhar momentos, percebemos que não foi à toa.

E que futuro esperar para a criança que vive situações como as que vocês encontram?
Quando a criança passa pelas quatro fases sem ajuda, muitas vezes deixa de ser vítima para ser algoz. A pedagogia de emergência quer interromper esse ciclo nas duas primeiras fases. Um trauma destrói uma pessoa quando ela não tem condição de aceitar e elaborar o que aconteceu. Mas, quando consegue reconhecer os momentos difíceis, incorporá-los à sua biografia e seguir adiante, ela cresce como ser humano. Nem sempre os momentos mais bonitos são os que mais levam a crescer.


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