É possível antever ao menos uma grande pedra no sapato da versão 2.0 dos conteúdos de geografia da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), elaborada pelo Ministério da Educação: as bandeiras levantadas pelo movimento Escola Sem Partido, que se enxerga como um contraponto necessário à suposta "doutrinação esquerdista" nas escolas brasileiras.
Dá para imaginar que os defensores do Escola Sem Partido ficariam de cabelo ao pé ao ler que o capitalismo "é uma ordem socioeconômica globalitária que (...) produz a intensificação do consumo e a consequente pressão sobre os ambientes, bem como, por meio desses processos combinados, promove desigualdades sociais", como diz o documento.
A rigor, não há nenhuma inverdade clara na frase (embora fosse possível acrescentar que o capitalismo também é capaz de gerar e distribuir riqueza, dependendo de como é regulado). Mas os termos usados para descrever o cenário da globalização estão muito associados a uma retórica política de esquerda, coisa que, para muita gente, é suficiente para "contaminar" o currículo.
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Tal reação, porém, seria algo muito próximo de jogar o bebê fora junto com a água do banho, porque os conteúdos propostos para a disciplina, em especial nos anos do ensino médio, abordam com bastante habilidade as conexões entre dinâmicas econômicas e ambientais que terão papel-chave para o futuro do Brasil e do planeta.
O texto acerta ao destacar as relações entre padrões globais de consumo e matriz energética, ou entre conflitos fundiários e problemas ambientais, por exemplo.
Ao abordar a questão energética e as mudanças climáticas, seria importante pensar de forma mais clara como articular esses temas com a disciplina de física, que também deve abordá-los, segundo a atual versão da base curricular.
Se esse aspecto do currículo pode ser considerado inovador, os conteúdos propostos para os anos do ensino fundamental apostam numa estratégia consagrada há décadas: começar com o local e "subir" paulatinamente níveis hierárquicos (município, Estado, país, continente etc.), para que o aluno compreenda o lugar que ocupa no mundo.
A ideia, no entanto, é destacar que que essas categorias (como "paulistano", "paulista" ou "brasileiro"), não são as únicas formas de identidade num país complexo e multicultural como é o nosso.
Alunos na educação básica - Por etapa, em milhões*
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"CARTOGRAFIA GO"?
Não é possível ensinar geografia direito sem bons mapas, e o texto atual da BNCC enfatiza a necessidade de explicar aos alunos como manipular as diferentes plataformas cartográficas desde o começo do ensino fundamental, o que é ótimo.
Por outro lado, embora haja uma rápida menção à ascensão do GPS e de outras "geotecnologias", como diz a proposta, a impressão é que falta uma visão mais estratégica sobre como incorporar esse tipo de ferramenta ao trabalho tradicional em sala de aula.
Afinal de contas, estamos nos aproximando da marca de um smartphone para cada brasileiro (quase 170 milhões desses aparelhos são usados hoje no país, segundo dados divulgados em abril deste ano pela Fundação Getúlio Vargas).
A geração atual de crianças e adolescentes é a geração dos aplicativos de mapas em tempo real (e do "Pokémon Go", obviamente). Por que não uma "Geografia Go"?
É claro que é mais difícil, trabalhoso e até perigoso levar os alunos para uma experiência imersiva no espaço de suas cidades. No entanto, eles provavelmente enxergariam o conhecimento geográfico de outra maneira se pudessem virar exploradores de celular na mão (o que muitos deles, aliás, já estão fazendo por conta própria, sem objetivos pedagógicos).
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Calendário
26.jun.2014 - Plano Nacional de Educação é sancionado; lei prevê que o governo crie proposta de base curricular em até dois anos
16.set.2015 - MEC apresenta a 1ª versão do documento e abre consulta pública; as áreas de história e gramática geraram polêmica
15.dez.2015 - Ministério inicia análise das contribuições recebidas na consulta pública
3.mai.2016 - MEC divulga 2ª versão da base e a envia ao Conselho Nacional de Educação e a representantes de Estados e municípios
jun. a ago.2016 - Texto está sendo debatido nos Estados e deve ser devolvido ao MEC até agosto
ago a nov.2016 - Um comitê gestor vai revisar a base (ensinos infantil e fundamental) e debater o ensino médio
nov.2016 - O objetivo é ter a versão final até essa data (para infantil e fundamental), mas não há previsão de quando ela começa a valer
1ºsem.2017 - MEC deve definir a base curricular do ensino médio, após aprovação de projeto de lei no Congresso que prevê um novo formato para a etapa