Folha de S. Paulo


Educadores veem excessos em nova base curricular brasileira

Apesar do nome, a Base Nacional Comum Curricular, documento que definirá os conteúdos essenciais ao aprendizado no país, não se atém ao básico. Essa é a conclusão consensual de especialistas em educação consultados pela Folha.

"Em vez de base, decidiram construir um edifício inteiro", sintetiza Simon Schwartzman, pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade.

"É impossível que o currículo tenha sido produzido em dois meses, ainda mais com o documento apresentando este alto grau de uniformidade ideológica", diz João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto.

Caminha na mesma direção a análise de Naercio Menezes Filho, professor titular e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper: "A base peca por ser excessivamente ampla. O ideal seria ter poucos pontos, dando um currículo mínimo. Ao querer abarcar muito, dificulta sua aplicação pelos professores".

Na opinião de Menezes Filho, a longa extensão do currículo é estratégia que serve para diminuir as resistências de docentes e seus órgãos de representação -tradicionalmente avessos a qualquer recomendação que diminua a autonomia em sala de aula.

Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco (que desenvolve projetos na área de educação pública), usa uma útil analogia: "O documento às vezes parece um jogo de pressão para desenhar todos os organismos, mas o seu desafio é achar o coração do corpo".

Nesta primeira versão, apresentada em setembro e ainda aberta a modificações, o currículo nacional contém 302 páginas. Os assuntos foram divididos em quatro grandes áreas do conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas.

"Colocar a base em discussão é um grande mérito do Ministério da Educação. A adoção dessa medida já está atrasada no país, mas o texto deveria ter um núcleo comum bastante claro e contido. Fazer apenas uma soma de reivindicações sempre resultará além do essencial", observa Henriques.

Na área de história, por exemplo, onde o problema de escolhas baseadas em ideologia de esquerda foi apontado por pesquisadores, Henriques entende que o conteúdo sugerido "não tem cara de ser o núcleo da disciplina". Em outras matérias, o pesquisador nota maior isenção.

Os erros iniciais são reconhecidos pelo MEC. De acordo com o secretário de Educação Básica, Manuel Palácios, o primeiro desenho da base possui "algumas assimetrias", o que oferece "espaço para revisão".

Revisar e enxugar a base curricular torna-se ainda mais importante porque ela não esgota o conteúdo oferecido aos estudantes. O documento padroniza 60% do programa educativo -os outros 40% compõem a chamada "parte diversificada", a cargo de Estados e municípios.

Para Henriques, a palavra "diversificada" atrapalhou o debate. O líder do Instituto Unibanco acredita que tópicos que dependem do contexto socioeconômico das regiões do país deveriam estar integrados no currículo comum. Os 40% restantes seriam assim flexíveis segundo escolhas de aprofundamento dos próprios estudantes.

Essa interpretação encontra eco no MEC, que não vê o total de 40% como exclusivo para conteúdos locais. "É uma possibilidade para oferecer itinerários diferenciados", diz Palácios.

Se o diagnóstico é claro, como resolver o problema? Para Henriques, o primeiro passo é o reconhecimento público de que houve excesso de objetivos de aprendizagem, seguido de esforços sóbrios e analíticos a respeito do que e como cortar.

A julgar pelas declarações de um dos elaboradores dessas diretrizes, parece haver espaço para essa mudança.

"Não é fácil definir o essencial, e creio que nosso esforço transcendeu o objetivo", reconhece Luís Carlos de Menezes, professor do Instituto de Física da USP e membro da equipe de 116 educadores designada pelo MEC para redigir a proposta nacional.

De acordo com Schwartzman, a base deveria se dedicar principalmente às áreas de português e matemática.

"Nos países europeus, a escolaridade obrigatória vai até os 15 ou 16 anos, em um ciclo de formação geral indispensável. O ensino médio lá serve para aprofundamento."

PRAZO CURTO

A adoção de um currículo mínimo nacional não resolverá por si só os problemas da educação no país, mas esse é um passo importante para aperfeiçoar o ensino, avaliam especialistas da área.

Sem a base comum, dizem, predominam as interpretações pessoais dos professores sobre o que os alunos devem aprender, gerando muitas desigualdades no conteúdo lecionado. "Parâmetros pragmáticos ajudam a ensinar melhor", avalia Naercio Menezes Filho, do Insper.

"A base é um pilar do sistema de justiça social. Nada mais democrático e justo", diz Wilson Risolia, ex-secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro e diretor da Falconi Educação.

Hoje, países como Austrália, Chile, EUA, França e Inglaterra contam com documentos que definem o aprendizado mínimo essencial.

Chegar a esse bom currículo mínimo, com descrições precisas, linguagem clara, coesão entre as disciplinas e sequenciamento coerente entre as séries, no entanto, é resultado de um processo que leva tempo e requer diálogo.

No Brasil, a maioria dos especialistas avalia que a condução dessa discussão está longe do ideal.

Em primeiro lugar, eles criticam a data fixada para que o plano seja concluído: até o fim de junho de 2016, como determina o Plano Nacional de Educação, lei aprovada em junho de 2014.

Mesmo para o professor Luís Carlos de Menezes, da USP, que participou da elaboração como assessor, "o esforço foi rápido demais".

O segundo ponto sujeito a críticas é a forma estabelecida para gerenciar o debate sobre essa proposta inicial.

O MEC disponibilizou um site para que qualquer interessado se cadastre e faça sugestões ao texto. A partir do dia 15 deste mês, uma comissão passará a julgar as propostas, e fará uma segunda versão da base até março.

Simon Schwartzman, pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, afirma que rever o documento não é apenas recolher e incorporar comentários. "O trabalho deveria ser coordenado por um grupo pequeno, de renome. Aqui, criaram um monstro", lamenta.

Até o momento, não foram divulgados detalhes dos critérios que nortearão a triagem das sugestões. Mais de 4 milhões de recomendações já foram recebidas.

O novo documento deve ser divulgado até o início de abril, para então ser discutido nos Estados. Só então deve ser enviado ao CNE (Conselho Nacional de Educação).

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BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

O QUE É?
Documento que organiza assuntos que as escolas do país devem obrigatoriamente abordar

SERVIRÁ A QUAIS ETAPAS?
Toda a educação básica, dos 4 aos 17 anos (educação infantil, ensino fundamental 1 e 2 e ensino médio)

QUEM DEVE APLICAR?
Todas as escolas das redes municipais, estaduais, federal e particulares

COMO É ORGANIZADA?
O documento define 60% do currículo, sendo que os demais 40% ficam a critério de Estados e municípios

Educação infantil
Organizado em "campos de experiência":
O Eu, o Outro e o Nós
Corpo, gestos e movimentos
Escuta, fala, pensamento e imaginação
Traços, sons, cores e imagens
Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações

Ensino fundamental (anos iniciais e finais) e ensino médio
Organizado em quatro áreas de conhecimento, divididas em componentes curriculares

LINGUAGENS
Língua portuguesa
Língua estrangeira moderna
Arte
Educação física

MATEMÁTICA
Matemática

CIÊNCIAS HUMANAS
História
Geografia
Ensino religioso (EF)
Filosofia (EM)
Sociologia

CIÊNCIAS DA NATUREZA
Ciências (EF)
Biologia (EM)
Física (EM)
Química (EM)

TRÂMITE E PARTICIPAÇÃO
Documento foi elaborado pelo MEC e 116 especialistas, divididos em 29 comissões
Em 16.set.15, ministério divulgou primeira versão da base nacional
É possível enviar sugestões, críticas e comentários pelo site basenacionalcomum.mec.gov.br. Não há data limite
Em 15.dez.15 começam as análises das contribuições do primeiro ciclo de debates;
Até abr.16, uma segunda versão deve estar pronta para seguir para fóruns estaduais. Só então, o documento será entregue ao Conselho Nacional de Educação
Pelo Plano Nacional de Educação, documento deve estar concluído até fim de jun.16

CRÍTICAS À VERSÃO INICIAL

Excessivamente extenso em alguns tópicos
Pouca discussão com os especialistas
Feito com pouco prazo
Texto inicial sem autoria
Algumas escolhas motivadas por ideologia de esquerda
Maior parte dos países não contempla ensino médio em currículo básico
Falta de foco nas matérias mais básicas (português e matemática)
Autonomia regional de 40% –parcela seria muito grande
Ausência de bibliografia ou autores recomendados
Aberto demais a interpretações
Baixa coerência curricular (relação entre tópicos ensinados a cada ano e entre os anos)
Fraca continuidade entre tópicos de uma mesma disciplina

Colaborou FLÁVIA FOREQUE, de Brasília


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