Folha de S. Paulo


Aplicativo quer estimular adoção de criança e adolescente 'fora do padrão'

Apesar de inicialmente querer adotar apenas um bebê pequeno, um casal de Porto Alegre acabou se deixando encantar há seis anos por uma dupla de irmãos de quatro e sete anos de idade.

Dessa experiência surgiu a ideia de criar um aplicativo para permitir que outros pais também possam se surpreender com crianças e adolescentes fora dos padrões inicialmente determinados por eles.

Inspirada em aplicativos de relacionamento, a tecnologia vai permitir que o usuário acesse fotos, vídeos, cartinhas e desenhos de quem espera por adoção.

A versão Android foi finalizada em novembro, mas só vai estar pronta para uso no segundo semestre de 2018. Ainda é preciso fazer a migração dos dados do sistema do Tribunal de Justiça para dentro do aplicativo. Concluída esta etapa, a ferramenta ainda vai passar por uma fase de testes.

Por conter informações sigilosas, o acesso será restrito aos pais registrados no Cadastro Nacional de Adoção, independentemente do Estado em que moram. Já as crianças e adolescentes aptos a adoção serão apenas aqueles registrados no Rio Grande do Sul, pelo menos inicialmente. A expectativa é que os Tribunais de Justiça de outros Estados possam aderir ao sistema.

BUSCA RESTRITA

Quando decidiram ingressar no cadastro nacional, o analista de sistemas Nilson Ayala Queiroz e a arquiteta Karine Queiroz já tentavam ter um filho havia dez anos.

Assim como 31% dos pais aptos a adotarem no Brasil, o casal restringiu sua busca a bebês de até dois anos, que representam só 1,4% do total de crianças disponíveis no país.

Um ano e meio depois, no entanto, Karine anunciou: "Encontrei nosso filho". Ela havia acabado de voltar de um abrigo onde fazia trabalho voluntário. Em seguida convidou o marido: "Vamos conhecer os dois?". Nilson demorou a entender. "Como assim dois?" Eram dois irmãos.

Ao se inscreverem no cadastro, Nilson e Karine figuravam entre os 66% dos pais que não aceitam adotar irmãos. Mais uma vez, estavam na contramão da realidade: 66% das crianças têm irmãos, e o esforço das autoridades é sempre pela adoção conjunta.

Oito meses depois, Wesley e Iuri chegavam à nova casa. Foi quando Nilson teve a ideia de criar uma ferramenta que permitisse que mais pais tivessem a oportunidade de se encantar.

"Uma coisa é a realidade. Tu não vais encontrar um nenê para adotar neste instante, mas talvez encontres uma criança de 4, uma de 8, uma de 12 anos, e te apaixones."

O material está sendo elaborado sob orientação do TJ gaúcho. Ao fazer o login, os casais inscritos no cadastro se comprometem a não compartilhar as informações.

Quem não está registrado no cadastro nacional até poderá acessar o aplicativo, mas não será possível visualizar nomes nem imagens que identifiquem as crianças.

'DEU MATCH'

O sistema foi desenvolvido de forma gratuita pela Agência Experimental de Software (Ages), da PUC-RS, sob a coordenação do professor Eduardo Arruda. O formato lembra os aplicativos de paquera, nos quais o usuário navega por uma série de fotos de possíveis pretendentes.

Para a coordenadora da Ages, Alessandra Dutra, a grande sacada é que a busca não se limita à faixa etária. "Hoje, se quero adotar uma criança de até dois anos, dois anos e um dia já não cai para eu acessar. O aplicativo vai abrir o leque de opções."

Ao navegar pelas imagens, os candidatos podem demonstrar interesse por uma criança –o registro fica salvo para ser reavaliado mais tarde– ou solicitar a adoção junto ao Tribunal de Justiça.

DIFICULDADES

O total de pais registrados no Cadastro Nacional de Adoção é oito vezes maior que o número de crianças e adolescentes à espera de uma família. Ainda assim, muitos casais esperam anos até conseguirem adotar uma criança.

"Recém-nascida, saudável, branca... Quanto mais exigências o habilitado colocar, mais difícil", diz a juíza-corregedora Andréa Rezende Russo, coordenadora da Infância e Juventude do TJ-RS.

A idade é de longe o principal limitador das adoções: 94% dos pretendentes aceitam apenas crianças de até 7 anos, mas elas representam só 10% das que estão na fila.

Para Cinara Vianna Dutra Braga, promotora da infância e juventude de Porto Alegre, não basta encorajar os pais a adotarem crianças mais velhas. Também é preciso acelerar os processos judiciais.

"A criança ingressa com poucos dias no acolhimento e quando tu vais ver ela está com três anos de idade e ainda não terminou a ação de destituição [do poder familiar] e não foi encaminhada para adoção. Enquanto isso, os pretendentes de bebês ficam na fila por oito anos."

Essas dificuldades motivaram recentemente a elaboração de uma lei federal, sancionada em novembro, que traz mudanças no cadastro nacional. Algumas das principais alterações são a redução de prazos e a preferência na lista para interessados em adotar irmãos e crianças com deficiência ou doença crônica.


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