Folha de S. Paulo


Pets ingerem de anzol a teclado de computador e levam donos à loucura

Veja

Um fio de lágrima descia pelos olhos da psicóloga Larissa Koeskes Pereira enquanto sua cachorra era levada para a sala de cirurgia. Dois dias antes, Mila, a yorkshire de 1 ano e 6 meses, tinha engolido um ímã amarelo de um mural de fotos. Na clínica veterinária Animal Place, no Parque Maria Domitila, zona norte de São Paulo, uma radiografia confirmava a presença do corpo estranho no estômago.

Orientada pela clínica, a psicóloga vigiou em casa o comportamento da cachorra e investigou as fezes dela por 48 horas. Sem sinal do objeto, voltou ao local para uma intervenção. "O ímã estava embaixo da mesa, tentei tirar da boca dela, mas já estava na goela", recorda Larissa, inconformada consigo mesma.

Na sala de cirurgia, a espoleta yorkshire já cedia à anestesia geral. Pilotando um endoscópio, Claudia Zanatta caminhou pelo esôfago e insuflou o estômago.

Não demorou para surgir na tela um pequeno disco preto. A veterinária continuou a pesquisa. Um pouco mais para a esquerda apareceu uma capinha amarela, que também boiava no suco gástrico.

Ela inseriu pelo tubo uma pinça com um cestinho de silicone, habilmente abarcou os dois objetos e os trouxe de volta goela afora. Colocou ambos num envelope plástico. Já podiam chamar a proprietária.

"O imã talvez saísse pelo intestino, mas a capinha amarela não passaria pelo piloro, esfíncter que separa o estômago do duodeno", diz a endoscopista. Isso poderia causar obstrução do bolo alimentar e provocar vômitos.

Larissa beijava uma Mila ainda inerte. "É só sair de casa, né, filha? Não vai mais sair agora", maternava.

O evento tinha acontecido na casa da avó de Larissa, onde um sobrinho dela havia atirado o ímã no chão.

Na sala de cirurgia, a yorkshire abriu um olho e fechou. Em breve voltaria ao lar.

A ingestão de corpos estranhos é fato relativamente corriqueiro nos hospitais veterinários. Filhotes são os mais arteiros. Não só pela curiosidade, mas porque querem aliviar algum incômodo com o nascimento dos dentes.

Se for um golden retriever, labrador, bull terrier, boxer, dachshund ou beagle, a atenção deve ser redobrada. São raças que ocupam o topo da lista dos que incluem objetos no cardápio. Mas pode se tratar também de uma compulsão, e aí é preciso acompanhar de perto o dia a dia do animal para tentar descobrir o que estaria estimulando o desvio de comportamento.

RISCO

Claudia já desligava o monitor e fechava as maletas com cinco tubos de tamanhos variados e outro tanto de acessórios –o próximo atendimento estava a 25 quilômetros dali, no Ipiranga, zona sul, onde um beagle teria engolido a boca de uma garrafa PET e vomitado 15 vezes desde então.

No celular dela, a imagem do raio-X enviada pela clínica não mostrava claramente a localização do corpo estranho. "Um dos casos mais graves é quando o objeto para no esôfago", explica Zanatta, enquanto dirigia pela marginal Tietê, no rush, sob a pressão das chamadas do celular e acompanhada pela repórter.

"Aí talvez precise abrir o tórax do animal, uma cirurgia de alto risco", completou.

É o que pode acontecer se um cachorro comer osso de galinha, por exemplo. As pontas agem como travas, prendendo-se às paredes do órgão. O tecido pode necrosar e rasgar se o entrave não for tirado a tempo.

Osso de galinha e de costela são um clássico no mundo dos corpos estranhos em cães. Menos comuns, mas cada vez mais frequentes são objetos que os donos deixam à mercê da curiosidade, da gula e da ansiedade dos pets.

Zanatta coleciona casos de moedas, anéis, tampinhas de garrafa, chupetas, agulhas, colheres. "Já retirei treze moedas e dois anéis de um golden retriever", lembra.

No dia anterior, havia pescado do estômago de um vira-lata um absorvente, item bastante ticado pelos endoscopistas, além de meias, lingerie, pedras e caroços de frutas.

Da lista de objetos mais exóticos colhidos por Zanatta consta um teclado de borracha, engolido em pedaços por um vira-lata. Por uma hora e meia, ela retirou um abecedário, números, acentos, um Delete, um Return e um Shift.

"Uma cirurgia de abdômen daria conta mais rapidamente, mas a vantagem da endoscopia é que o processo é minimamente invasivo, sem risco de infecção, e o animal pode voltar para casa assim que se recuperar da anestesia", diz.

DEBUTANTE

Rejane Décio Belloli descobriu na raça que Gaya estava no rol dos cães mais gulosos.

Aos 3 meses, a bull terrier de focinho rosa passou por sua primeira gastrotomia (cirurgia de estômago). Dela saiu um bololô indistinguível num primeiro momento, mas que depois se revelou um emaranhado de pelo e cabelo envolvendo arame, pedaço de chinelo, uma colher de plástico e um canudo. Onze dias depois, ainda com os pontos no estômago, Gaya se submetia a uma endoscopia, desta vez para extrair tiras de uma Havaianas e mais pelo.

Na Clínica Evet, no Alto da Lapa, a cachorra passaria por mais duas endoscopias e outra gastrotomia. Acharam gomos de bola de futebol, nacos de coco, pedaços de mangueira e a pulseira de um relógio.

Folheando um livro em inglês, a veterinária Letícia Hebling seleciona o verbete "Pica". Trata-se de uma síndrome cujo principal sintoma é a compulsão por comer coisas não alimentícias. "É um comportamento muito ligado à ansiedade que, em alguns casos, pode estar por trás da ingestão contínua de corpos estranhos", explica a médica.

Hebling trabalha na clínica PoliVet, em Rio Claro (a 175 km de São Paulo). Ela lembra que os principais sintomas da presença de corpo estranho no animal são prostração, vômitos, falta de apetite, diarreia e abdômen endurecido.

A golden retriever Hannah foi uma de suas pacientes. Aos 5 meses, engoliu um pano de chão. Os donos, cientes dos riscos de obstrução do intestino, esperaram alguns dias para ver se o pano seria expelido. Também estavam atentos ao preço da "brincadeira".

Contando com a anestesia, uma cirurgia do gênero gira em torno de R$ 1.500; a endoscopia vai de R$ 1.000 a R$ 4.000. Mas é preciso acrescentar à primeira o tempo de internação, que pode chegar a R$ 1.000 por dia.
Como o quadro não se alterou, restou operar. Momentos antes, ela vomitou o tecido na sala de cirurgia –quase engolia de novo, não tivessem tirado o pano de perto.

Um dos casos mais graves de Hebling foi o de outra Hanna, uma labradora, que em abril comeu quatro anzóis.

Paola Ferreira Costa, a dona, conta que o pai dela estava pescando quando a cachorra os engoliu. A radiografia mostrou os anzóis no esôfago.

Diante da ausência de um endoscopista na clínica –esse profissional costuma ser requisitado avulsamente–, Paola foi para Campinas, onde o endoscopista Rogério Akio Nishimaru extraiu dois ganchos e empurrou os demais para o estômago.

A própria endoscopia, porém, acabou por dar conta também dos anzóis restantes, que por sorte não haviam se agarrado à parede do órgão. "Não deixamos mais nada com ponta ou coisa parecida perto dela", diz Paola, que também tem um vira-lata.

Hebling diz que, às vezes, o animal engole um objeto grande e inteiro –o nó de um osso de couro, por exemplo– para ganhar a disputa com outros à volta. Também pode não querer devolver ao dono aquilo que entende como seu.

Os gatos seriam mais seletivos, dizem os veterinários. Ainda assim, o hábito de perseguir linhas pode culminar com uma agulha na ponta.

ESTÍMULO

À parte acidentes de percurso, é consenso entre os especialistas que os animais de estimação necessitam de estímulo e condições que favoreçam seu desenvolvimento e sua saúde física e mental.

"É preciso passear com o animal para que gaste energia, oferecer brinquedos adequados, criar um ambiente próprio a cada raça e idade, perceber se o cão está sofrendo de ansiedade por estar sozinho", explica Zanatta, que enfim chega ao Ipiranga, na clínica Animal Care.

O beagle Kripto, de 1 ano e 3 meses, se aconchega no colo da anestesista. Parece abatido. A endoscopista encontra grãos de arroz no estômago, além de pelo e uma diminuta etiqueta de plástico, com um barbante na ponta. Da boca da garrafa PET, nenhum sinal.

Na sala de espera, mãe e filho aguardavam o resultado da endoscopia de Kripto.

Durvalina Antonia da Silva explica que o beagle não teria exatamente comido a tampa da PET, e sim mordiscado o plástico. Para Zanatta, a etiqueta encontrada talvez tivesse irritado o sistema digestório, talvez não.

"O prazer dele é destruir e engolir tudo", admite Leonardo Vicente. "Mas eu adoro esse ritmo brincalhão."

Krypto (com "y") é o nome do cachorro do Super-Homem. Em uma das versões da história, o animal é afetado por uma kriptonita dourada. Transforma-se num cão comum –e, como tal, perigosamente vulnerável.


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