Folha de S. Paulo


Albergue para travestis e transexuais vira modelo de inclusão em São Paulo

O Florescer é um centro de acolhida da Prefeitura de São Paulo, um albergue público no bairro do Bom Retiro, no centro, que só recebe transexuais e travestis.

É uma casa ampla com quatro quartos, grandes salas coletivas, um vão livre nos fundos (onde se realizam ensaios de teatro) e também uma quadra poliesportiva, onde treinam três integrantes de uma seleção de vôlei LGBT, que representará o Brasil, no ano que vem, em Paris.

O espaço pertence ao complexo assistencial da rua Prates, que tem mil vagas de hospedagem. Foi aberto em 2016 numa iniciativa pioneira e funciona da mesma forma desde então, sob o comando de Alberto Silva, que trabalha para a ONG que cuida da gestão terceirizada do lugar.

Por conta das dificuldades inerentes e da eficiência demonstrada pelo serviço, ele se transformou em uma hospedagem modelo da prefeitura.

"Essa população é duplamente marginalizada. Eu sempre disse que o principal era trazer o olhar humano", diz Silva, administrador que há 22 anos trabalha na rede de assistência social do município e já atendeu crianças, idosos e deficientes físicos.

"É você tratá-las sem rótulos, porque são pessoas que anseiam algo que lhes têm sido negado, a dignidade, na sociedade e dentro de sua própria casa, por não conseguirem ser quem são."

O Florescer abriga, hoje, 30 pessoas com idades de 18 a 64 anos. Desde que foi inaugurado, 23 moradoras, assim que foram encontrando empregos, deixaram a casa com carteira de trabalho assinada e autonomia para alugar seu próprio espaço de moradia.

Metade das moradoras atuais trabalham em varejistas, como o Carrefour, salões de beleza ou na rede local de saúde e de assistência social. Duas moradoras deficientes tem atendimento especial.

A ideia é que o local funcione como um caminho de curto prazo, cerca de um ano, para a reinserção social de uma população de rua específica e altamente marginalizada, alvo de preconceito.

O primeiro passo de quem quer entrar no centro de acolhida é passar pela triagem da rede assistencial.

A imensa maioria é recolhida na rua. A primeira etapa do atendimento é cuidar da questão da saúde. Muitas chegam debilitadas. Outras buscam o tratamento hormonal oferecido pelo SUS.

Há uma psicóloga dedicada a atender as moradoras do albergue. Segue-se ali uma política de redução de danos, em que drogas mais fortes, como o crack, são substituídas pela maconha.

Cuida-se também da documentação–muitas perdem os documentos nas ruas. Numa segunda etapa, começa a capacitação, com volta à escola, cursos especiais e oportunidade de trabalho. Algumas têm ensino médio completo, e a maioria, o fundamental.

Tatiane, 28, paulistana do Butantã, chegou ao Florescer em maio, sem documentos, depois de dolorosa jornada que envolveu longos anos de prostituição, internação pela família durante seis meses em uma clínica psiquiátrica para passar pela "cura gay" e mais de dois meses dormindo na praça Princesa Isabel, no centro, onde foi recolhida pelos assistentes sociais.

"A minha família não aceita a questão da transexualidade porque diz que é algo do demônio. É a questão da religião, eles são evangélicos. Cresci ouvindo isso desde criança", diz Tatiane. "Cheguei vinda de um submundo, que é prostituição, e me falaram aqui que poderia escrever uma história diferente."

Sua determinação e bom trato tornaram sua adaptação rápida e abriu frentes no mercado de trabalho. Voltou para a escola e, há quatro meses, foi contratada pela rede de assistência da prefeitura para ser agente de saúde.

Tatiane é uma das agentes responsáveis pelo atendimento dos moradores da cracolândia, onde já morou por uma semana. Sua experiência de usuária, sua lucidez e seu traquejo na comunicação com a população das ruas se transformaram em recursos úteis para o trabalho assistencial.

TEATRO OFICINA

Desde setembro, 14 moradoras da casa, incluindo Tatiane e outras três ex-moradoras, participam de um projeto artístico chamado Divas Florescer. É um espetáculo que já está em sua terceira edição e que com os ensaios realizados todas as quartas-feiras culminaram na apresentação de gala no Teatro Oficina, do diretor José Celso Martinez Corrêa, no centro.

Divas Florescer é o resultado de uma oficina teatral realizada pelo ator Márcio Telles. A partir do curso, elas aprendem técnicas de voz, corpo, regras de jogos teatrais e improvisações –uma das atrizes já foi convidada para fazer estágio no teatro Os Satyros.

Com base nos depoimentos delas, são criados textos e performances que estruturam o espetáculo.

Divas Florescer mistura teatro com coreografia e dublagem e resgata a era do transformismo no mundo LGBT, entre as décadas de 70 e 90.

A narrativa funciona como uma tomada de consciência da trans sobre sua própria condição. São mostrados inicialmente alguns estereótipos, com a macumbeira ou a "dona das ruas", e é apresentada a dura realidade da prostituição.

"Travesti pode ter peito e bunda, mas também pode ter casa, família, dignidade, respeito. Eles param o show e passam a fazer esses questionamentos", diz Telles.

"A questão é que elas não estão nessa vida só para ficar na rua, para pedir, elas estão ali para brilhar." Aí elas entram na cena do Moulin Rouge, em que cada uma faz um show individual.

Discreta e alegremente, há um esforço para transformar o Florescer num núcleo criativo e integrar a casa na sociedade. O centro tem atividade esportiva permanente com treinos regulares, e atividades culturais como visitas a museus e espaços culturais. A biblioteca cresce por meio de doações. "Temos até José Saramago", diz Vitória, 18.

A chef Paola Carosella oferece cursos de culinária para as moradoras. Quem aproveitou a oportunidade foi a baiana Alessandra Martinelli, que vem tendo suas aulas diárias para aprender a trabalhar na cozinha.

Ela chegou em setembro, após passar por albergues não especializados. "Fiquei pegando pernoites em algumas casas de abrigo, mas não conseguia vaga", diz ela, que passou dez anos presa por roubo e furto e é portadora de HIV.

"Cheguei aqui sem eira nem beira e fui muito bem recebida, acreditaram e já começo a ver chances de encontrar um trabalho", diz.

O exemplo do Florescer tem mostrado a falta da existência de albergues especializados e que atendam a população de rua de maneira com maior respeito à identidade, não apenas de gênero.

Trata-se de qualificar a assistência para populações específicas, como casais e famílias que vivem na rua, donos de cachorro e carroceiros, além de dar acolhida especial para crianças, idosos e deficientes físicos.

"A maior parte dos serviços é para solteiros e a gente tem que se adaptar à realidade que está mudando", diz o secretário de Assistência Social, Filipe Sabará.

Dois centros de acolhida que serão inaugurados em janeiro, um na rua Porto Seguro, na Luz, e o outro no Canindé, na região central e na zona norte respectivamente, terão apenas quartos fechados e lugar para 300 casais.

Já existe um albergue funcionando nesse modelo, na avenida Nove de Julho, com onze dormitórios. Dos dez albergues inaugurados neste ano em São Paulo, oito contam com estacionamento para carroça e canil.

Sobre o Florescer, o secretário de Assistência Social diz que ele prova que quando você adapta um serviço de forma mais individualizada, você tem um resultado melhor.

Vitória, 18, é a mais jovem moradora do Florescer, e está vendo, pela primeira vez, boas possibilidades de futuro. Ela chegou no centro de acolhida, há três meses, vinda diretamente da casas dos pais, na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, onde enfrentava sérios conflitos familiares por causa da de sua condição.

Acabou expulsa de casa, procurou Silva pelo Facebook, explicou sua situação, foi visitar o espaço um dia antes e conseguiu uma vaga. "Nunca tinha estado com tantas pessoas com quem eu pudesse me identificar", diz.

Vitória terminou o ensino médio e seus planos agora são encontrar trabalho e fazer um curso de teatro. Ela começará também, em janeiro, a fazer a terapia hormonal por meio do SUS.


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