Folha de S. Paulo


Doria agora quer incluir farinata na merenda de alunos da rede municipal

Jorge Araujo/Folhapress
São Paulo SP Brasil 18 10 2017.Na Curia Metropolitana de São Paulo no bairro de Higianopolis o prefeito João Doria e cardeal Dom Odilo Scherer falaram no contexto da polêmica do granulado alimentício PODER. Jorge Araujo Folhapress 703 ORG XMIT: XXX
O prefeito João Doria e o cardeal Dom Odilo Scherer em evento sobre a farinata

O prefeito João Doria (PSDB) anunciou nesta quarta-feira (18) que pretende colocar até o final de outubro a farinata na merenda escolar. A farinata é uma farinha feita com alimentos perto da data de validade que seriam descartados por produtores ou revendedores. Idealizada pela organização Plataforma Sinergia (sem fins lucrativos), é usada também para ser adicionada a bolos e pães ou como um ingrediente para "reforçar" sopas.

"A Secretaria de Educação já foi autorizada a utilizar na merenda escolar, de forma complementar, o alimento solidário. Com todas as suas características de proteína, de vitamina, de sais minerais, para a complementação desta merenda. E já com início neste mês de outubro", disse o prefeito.

A farinata é a base do granulado alimentar que virou polêmica nos últimos dias, quando Doria divulgou que distribuiria o composto para famílias de baixa renda.

No entanto, durante coletiva de imprensa na Cúria Metropolitana, convocada para mostrar o apoio da Igreja Católica ao projeto, a secretária municipal de Direitos Humanos, Eloisa Arruda, disse que ainda precisam ser feitos estudos sobre a demanda nutricional dos alunos da rede municipal, o que coloca em dúvida a viabilidade de se incluir a farinata na merenda em menos de duas semanas.

"Teremos um diagnóstico das carências nutricionais da população. Isso será feito de forma paulatina, quem vai fazer isso é o Observatório de Políticas para o Desenvolvimento Social, que está alocado na Secretaria de Desenvolvimento Social. Quando o prefeito fala das creches, é possível que alimentos que hoje são fornecidos nas creches, como bolacha ou macarrão, sejam substituídos pela farinata já disponível. Ao lado dessa introdução na merenda nós desenvolveremos um estudo sobre as carências nutricionais da população em São Paulo", disse a secretária, ressaltando que alimentos "in natura" não serão substituídos por derivados da farinata.

"Estamos em contato com o secretário de Educação para saber quais são os cardápios das creches e como pode ser feito", completou. Nesse sentido, não há ainda definição sobre a composição da farinata que seria utilizada nas escolas.

Além disso, Rosana Perrotti, proprietária da Sinergia, teve dificuldade em explicar como será o processo de produção do composto em São Paulo. "O processo de descarte custa US$ 750 bilhões para a economia global. Cada mercado sabe seu custo. Nós vamos reduzir esses custos ao operacionalizar a farinata. A prefeitura não vai colocar nenhum recurso, vai simplesmente reduzir seus custos", disse. "Se tem um custo para incinerar, a empresa vai poder gastar menos para beneficiar", continuou.

"Uma indústria que está no Norte, ao vender o produto no Sul, se o produto chega próximo ao vencimento e precisa ser retirado do supermercado, ela tem que viajar do Sul de volta para o Norte e decidir o que vai ser feito: incineradora ou aterro. Vamos colocar tecnologias em cima de carretas, como já fizemos, para poder processar dentro da indústria, do armazém, ou fundo de supermercado. E isso vai ser bancado pela própria empresa, que vai diminuir os custos com logística", completou.

Segundo Perrotti, uma possibilidade será a instalação pela Sinergia de uma mini-usina de beneficiamento dos alimentos próximos do vencimento nessas empresas. Outro modelo, segundo ela, seria o de licenciamento. "Vocês sabem quantas indústrias da Coca-Cola existem no Brasil? Nenhuma. Porque ela licencia, com a patente que ela tem, para que o produto Coca-Cola seja produzido onde tiver a melhor eficiência. É o que vamos fazer."

Perrotti apresentou diversos produtos feitos com farinata nesta quarta (18): macarrão, pães, biscoitos. O polêmico granulado, no entanto, feito para ser parecido com uma pipoca e chamado por Doria de "comida de astronauta", ficou em segundo plano.

Reportagem da Folha mostrou que a gestão não tem nem sequer estatísticas de quantas pessoas na cidade de São Paulo vivem em situação de insegurança alimentar –termo usado para descrever grupos carentes de alimentos necessários à boa nutrição e que seriam beneficiados pela farinata. Dados do IBGE de 2013 apontam 1,5 milhão de pessoas nessa situação, em nível grave, em todo o Estado, e 7,2 milhões no país.

Anunciado pelo tucano como algo para ajudar a erradicar a fome em São Paulo e no país com apoio da Igreja Católica, o produto foi alvo de uma série de críticas de nutricionistas e chefes de cozinha, ganhando inclusive o apelido de "ração humana".

O prefeito prometeu que esse produto será distribuído em igrejas, templos, entidades da sociedade civil e pela própria prefeitura. Ele também disse que a prefeitura não terá custos com o projeto, e que os incentivos fiscais permitidos pelo projeto de lei são apenas facultativos, não obrigatórios, e a prefeitura não irá concedê-los.

CONTRA A FOME

Ao lado de Doria, o cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, voltou a fazer elogios à farinata como base de alimentos que seriam desperdiçados e que poderiam ser utilizados para combater a fome depois de beneficiados. "Fico ofendido quando falam que é ração humana. Não politizem a fome do pobre. Desprezar o pobre é não dar alimento a ele", disse o cardeal.

O prefeito, que se posiciona como candidato a presidente no ano que vem e disputa com o governador Geraldo Alckmin (PSDB) a escolha do partido, apontou a farinata como base de uma política que deve ser nacionalizada.

"Queria inclusive lembrar que o pão que vocês comeram agora há pouco com o café é feito com a farinata. Posso assegurar que vocês não comeram ração. Comeram alimento. O que entristece no país é a fome, e não a atitude de combater a fome (...) Solidário, sim, para que nós, nessa iniciativa, pudéssemos ampliar o atendimento às pessoas que têm fome, e fazer que esse exemplo de São Paulo possa ser seguido por outras cidades, outros Estados e gradualmente atender outras regiões brasileiras". Doria não havia avisado previamente os presentes que o pão era feito de farinata.

IRRITAÇÃO

Durante a coletiva de imprensa, Doria discutiu com a nutricionista Joice Martins, 29, funcionária do gabinete da vereadora Sâmia Bomfim (PSOL). Ela perguntou sobre isenção fiscal a empresas que participem do programa de erradicação da fome, e o prefeito insistiu em saber para qual veículo ela trabalhava e com qual vereadora tinha ligação.

"Você fez uma série de questionamentos, você não é jornalista. Você é uma das pessoas que, ao invés de contribuir positivamente para esse processo, contribui para o processo degenerativo. Você não deveria sequer estar aqui se apresentando como jornalista. Você está ocupando espaço daqueles que são profissionais e que gostariam de fazer perguntas. Peço a você que fique quieta e respeite os jornalistas. Sim [mando ficar quieta], porque você não é jornalista, você é uma ativista, representa uma vereadora. Aqui não é o espaço para isso", disse o prefeito.

Após a coletiva, Joice disse que têm tido dificuldade em obter acessos a dados sobre o programa e por isso fez as perguntas na coletiva de imprensa.

Na terça-feira (17), Sâmia Bomfim publicou vídeo nas redes sociais em que Doria, na época em que apresentava programa de televisão, perguntava "você acha que gente humilde, gente pobre, gente miserável, gente que infelizmente está nas ruas de São Paulo vai ter hábito alimentar?". A vereadora também tem anunciado plano de abrir Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o projeto do Executivo.

O prefeito disse desconhecer o vídeo, mas reafirmou seu conteúdo. "A resposta foi dada pelo próprio cardeal arcebispo de São Paulo aqui. O pobre tem fome, não tem hábito alimentar. Por que a insistência nesse tema? O pobre tem fome. Está claro para vocês isso? Ou vocês acham que o pobre tem hábito alimentar? Ele tem fome".

Dom Odilo Scherer deu declaração parecida minutos antes.

"O pobre tem fome. Hábito alimentar é para quem tem disponibilidade de alimento e pode se dar ao luxo de ter uma alimentação regular, refeições regulares, alimentação. Pobre não tem isso."

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Abaixo, entenda o que é esse granulado alimentar, a polêmica em torno dele e os argumentos contra e a favor da iniciativa.

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1. O que é a farinata?
Uma espécie de farinha feita a partir de vários alimentos (frutas e legumes, por exemplo) que estão perto da validade e seriam incinerados por produtores e supermercados. O objetivo é combater a desnutrição.

2. O que é o granulado alimentar?
Um produto feito à base da farinata. Essa farinha também pode ser adicionada a bolos e pães ou ser usada como ingrediente para "reforçar" sopas, já que teria boa quantidade de carboidratos e proteínas.

3. Qual foi o projeto anunciado por Doria?
Trata-se de um programa para combater o desperdício de alimentos e erradicar a fome. O texto, do vereador Gilberto Natalini (PV), foi apresentado ainda na gestão de Fernando Haddad (PT) e aprovado em setembro na Câmara Municipal.

4. A farinata faz parte do projeto municipal aprovado?
Apenas indiretamente. O projeto de lei menciona a "implantação de unidades de beneficiamento ou de processamento de alimentos em regiões em que se verifique destinação inadequada de volumes significativos de alimentos", mas não trata especificamente da farinata, de sua composição ou de seu uso.

5. Essa farinha pode ser usada na merenda só com aval de Doria?
Não. A Codae (Coordenadoria de Alimentação Escolar), da Secretaria Municipal de Educação, é responsável pelo planejamento, execução e o controle das atividades relativas ao abastecimento de gêneros alimentícios, assim como pela definição dos cardápios oferecidos na merenda. Resolução federal no âmbito do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) ainda estipula que a introdução de novos alimentos na merenda, com exceção de frutas e hortaliças, seja precedida por teste de aceitabilidade por parte dos alunos. O teste é realizado pela Codae, que analisa a pertinência dos alimentos com relação ao balanceamento nutricional.

6. E o granulado faz parte do projeto municipal?
Apenas de maneira indireta, como a farinata. O produto foi mostrado pelo prefeito em 8 de outubro apenas como exemplo durante evento para sanção da lei. Doria o apresentou dentro de uma embalagem com uma imagem de Nossa Senhora e o chamou de "abençoado".

7. Por que Doria apresentou o granulado se ele não faz parte do projeto?
A Plataforma Sinergia, organização sem fins lucrativos que fabrica o granulado, estava no evento e entregou uma amostra a Doria. Sem saber detalhes do produto, o prefeito fez um vídeo o promovendo.

8. Como seria a distribuição desses produtos pela prefeitura?
O modelo de distribuição para as escolas e seu cronograma não foram definidos. Doria afirmou apenas que a rede municipal receberia a farinata em outubro, de forma complementar. A secretária de Direitos Humanos, Eloísa Arruda, disse que a farinha deve ser usada como matéria-prima para bolos, macarrão, entre outros.
Segundo a gestão, o granulado seria distribuído sem custos, a partir de outubro, por entidades cadastradas -como igrejas, templos e sociedade civil- e pela própria prefeitura. A secretária também diz que regiões em que os alimentos in natura não chegam facilmente (que ela chamou de "desertos alimentares") em São Paulo também seriam contemplados -mas esses locais ainda não foram especificados.

9. Quem forneceria a matéria-prima usada na farinata e no granulado?
Os alimentos seriam doados por produtores, supermercados e até pessoas físicas, que seriam tratados pela Sinergia de forma ainda não especificada: por meio de usinas transportadas em carretas, ou por meio de licenciamento da produção para outras empresas

10. Qual é a relação desses produtos com a Igreja Católica?
A Arquidiocese de São Paulo apoia o uso da farinata no combate à fome desde 2013, quando dom Odilo Scherer a recomendou ao Papa Francisco por meio de carta. Nesta quarta-feira (18), o arcebispo disse que fica "ofendido" ao ouvir comparações da farinata a ração. "Não politizem a fome do pobre. Desprezar o pobre é não dar alimento a ele", disse.

11. Por que alguns nutricionistas e chefes de cozinha são contra a ideia?
Eles argumentam que a alimentação é um ritual que inclui saborear o alimento, preferencialmente in natura. Outra preocupação é o fato de a farinha ser feita à base de produtos próximos do vencimento. Nutricionistas que criaram o produto afirmam que ele pode ser um complemento de combate à fome em situação emergencial.

12. Produtos semelhantes à farinata já foram usados antes no país para o combate à fome?
Sim. Zilda Arns, médica sanitarista e fundadora da Pastoral da Criança, defendia um produto chamado multimistura, composto por farelo de arroz, trigo e pó de sementes. Apesar de ter sido divulgada como modelo nos anos 70 e 80, hoje a prática é desaconselhada pelos conselhos de nutrição por causa dos riscos relacionados a higiene e toxicidade.


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