Folha de S. Paulo


De advogado a professor, diplomados viram moradores de rua em São Paulo

Moradores de rua também têm sua "classe média", gente outrora mais abastada que entrou numa espiral de decadência da qual não conseguiu sair e, hoje, acode aos albergues da Prefeitura de São Paulo em busca de segurança e de apoio para sobreviver com as próprias pernas. É um subgrupo que não pratica a mendicância, evita dormir ao ar livre e usufrui da estrutura pública de assistência social por meses, às vezes, anos.

Sua penúria tem as mesmas origens de quase toda população excluída –desemprego, despejo, separação conjugal, doenças psiquiátricas e vício em álcool e drogas.

Mas seu tombo social costuma ser maior: até se verem sem nada e atingirem o esgotamento, passaram a maior parte da vida com trabalho e carteira assinada, fizeram cursos universitários, tiveram uma família, falam duas línguas ou mais e viajaram o mundo por conta da carreira ou por aventura.

"A gente vê que muitos moradores de rua são qualificados –tem ex-advogado, dono de posto de gasolina, piloto de avião", diz o secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará, que substituiu a vereadora Soninha Francine (PPS) no comando da pasta na gestão João Doria (PSDB) há seis meses.

"E normalmente o maior problema é emocional, a pessoa entra num ciclo de miséria e não acredita mais nela mesma. A mente não acredita mais que pode dar a volta por cima".

Segundo ele, há, nessa categoria, uma alta incidência de homens abandonados pela mulher e pela família, por causa do uso abusivo de álcool e drogas, que, por uma questão de orgulho, se tornam invisíveis para a sociedade e somem do mapa sem deixar rastros. Muitos não querem ser encontrados. Outros têm celular e podem ser contatados com mais facilidade.

"Meus problemas começaram quando minha mulher me deixou e voltou para a Ásia", diz o coreano Oh Eu Kweon, 55, ex-comerciante que vive hoje num albergue municipal na rua Prates, no centro de São Paulo e faz bicos para viver.

De acordo com a prefeitura, vivem hoje em situação de rua entre 20 mil e 25 mil pessoas, um aumento de cerca de 40% em relação ao último levantamento oficial feito, em 2015, pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), que detectou 15,9 mil pessoas nessa condição, entre albergados e errantes.

A crise econômica explica esse crescimento exponencial de mais de 2.000 almas por ano. A imensa maioria dessa população é de homens, 88,6%. As mulheres caem em desgraça mais raramente e com frequência vão para as ruas acompanhando seus maridos ou companheiros.

Do total da população em situação de rua, mais ou menos a metade se instala nos albergues públicos, que oferecem cerca de 12 mil vagas.

Editoria de Arte/Folhapress
Moradores de rua

Nesses locais, há quatro refeições por dia, banho, acompanhamento psiquiátrico e de outros problemas de saúde, cursos profissionalizantes, regularização de documentos e encaminhamento para encontrar trabalho.

"É um lugar que dá oportunidade para se recuperar, escapar da violência e procurar emprego", afirma o professor de inglês André da Mata, 46, morador do albergue Arsenal da Esperança, o maior da cidade, com 1.200 lugares.

Diferentemente do que se costuma imaginar, a maior parte dessa população trabalha. Entre os acolhidos em albergues, 17,9% estão empregados com ou sem registro em carteira e 57,7% atuam por conta própria, em geral no comércio de rua ou na catação de lixo e fazendo bicos.

Mesmo entre aqueles que moram na rua, 4,8% estão empregados.

A população de rua é muito heterogênea e o indicador mais palpável da classe média é a alta escolaridade.

O último levantamento da Fipe detectou que apenas 9% das 15,9 mil pessoas em situação de miséria tem curso superior completo ou incompleto. (A grande maioria dessa população, 80,6%, não terminou o ensino médio, 9,6% é analfabeta).

Entre 2010 e 2015, houve um crescimento do número de pessoas formadas em universidades vivendo em situação de rua, tanto na população acolhida em albergues quanto na que dorme nas calçadas, de 1,9% para 4%.

"A gente encontra famílias de classe média, ex-empresários e gente que teve uma boa vida num passado recente", diz o padre Julio Lancelotti, coordenador da Pastoral dos Moradores de Rua.

"O que pode explicar isso é a história de vida de cada um, mas normalmente essas pessoas enfrentam uma sucessão de perdas, que envolve a sanidade, a profissão e os laços familiares."

A Folha ouviu cinco desses homens aparentemente bem preparados que perderam o rumo.

MIGUEL DI DOMENICO, FERRAMENTEIRO, 56

Há pouco mais de mês, uma combinação perversa levou o ferramenteiro argentino Miguel Di Domenico, 56, a morar nas ruas e praças do centro de São Paulo.

Misturou-se um problema de saúde –um coágulo no coração que o levou a ficar um ano sem trabalhar e a uma internação no Instituto Dante Pazzanese, na zona sul– com um golpe que afirma ter tomado de um sócio na sua pequena empresa.

Somou-se a isso o afastamento de mais de uma década da ex-mulher e das duas filhas, hoje com 19 e 24 anos, e a equação destrutiva se fechou. Miguel se viu sem ninguém, sem dinheiro e sem ajuda, que também não pediu a nenhum amigo por orgulho.

Com apenas uma mochila de roupas e um saco de tralhas, partiu para uma jornada sem rumo pela cidade.

No último dia 12, Domenico, que morou na Itália muitos anos e, nos velhos tempos, fazia negócios com prata em países como Espanha e Suíça, zanzava pela praça da Sé atrás de uma vaga de pernoite em algum albergue da prefeitura.

Buscava, também, um prato de comida em meio ao cenário de disputa de almas em que a praça se converte durante a noite, onde grupos de fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus dividem espaço com católicos e assistentes sociais da administração pública para acudir os homens e as mulheres das ruas.

O argentino parecia um pouco atordoado, mas conformado com seu destino.

Enquanto não consegue uma vaga definitiva em um albergue, ele tem passado seus dias andando pelas ruas e deitado nas calçadas –começou sua jornada errante na rua Boa Vista, perto de um posto policial, onde se sentiu mais seguro, e agora começa a entender a nova vida.

"É um lugar novo para mim e nunca pensei que pudesse chegar a essa situação –tudo o que podia dar errado deu errado", diz Domenico com um sorriso plácido no rosto e com sotaque italiano. "É um submundo desconhecido que ainda estou tentando entender e que você só conhece mesmo quando vive."

Avener Prado/Folhapress
Miguel Di Domenico. Pessoas na classe média que faliram e foram morar em albergues. Foto feita na praça da Sé.
O ferramenteiro argentino Miguel Di Domenico, 56

ANDRÉ DA MATA, PROFESSOR, 46

Em março deste ano, o artesão de bijuterias e professor de inglês André da Mata, 46, ficou 20 dias largado nas ruas de São Paulo, jogado no mundo, sem tomar banho ou trocar de roupa. Por conta de sua dependência em álcool, decidiu se internar no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), do governo do Estado, onde ficou mais 33 dias.

Atualmente hospedado no albergue Arsenal da Esperança, ele toma medicamentos para suportar a abstinência. Diz que, enquanto se trata, está juntando dinheiro com a venda de seu artesanato para comprar uma barraca.

"Durmo na rua, mas me defino como um viajante", afirma. "Leio muito Humberto Rohden, autor de 'A Experiência Cósmica', e a Bíblia, além de fazer meditação."

Mata nasceu em Jacareí (SP), cresceu em Brasília e diz que sempre foi um homem errante. Fez curso de letras, mas não terminou. A primeira oportunidade para uma longa viagem apareceu em 1995, após ser batizado na Igreja mórmon. Foi convidado a servir como missionário e ficou dois anos em Nova York.

Depois de uma rápida escala em Brasília, onde trabalhou algum tempo na agência de turismo do pai, foi para Salt Lake City, nos EUA, sede da igreja. "Viajei por 25 Estados americanos e passei seis anos por lá sobrevivendo com a venda de artesanato".

Esse período terminou com uma deportação para o Brasil, mas Mata não perdeu tempo. Assim que chegou em Brasília embarcou para Israel, onde passou alguns meses, e depois circulou quatro anos pela Europa. Morou na Itália, França, Suíça, República Checa e Espanha, onde acabou sendo deportado novamente.

Entre 2008 e 2014, trabalhou no setor hoteleiro e deu aulas de inglês em Brasília e no Rio Grande do Sul. "Há três anos, me desiludi com tudo, vendi um carro que meus pais tinham me dado e fui para a Chapada Diamantina orar e meditar para encontrar meu eu divino", diz. "Acho que lá começou minha nova história." Mata espera se recuperar do alcoolismo para retomar sua jornada.

Marcelo Justo/Folhapress
Andre da Mata,46, morador do albergue Arsenal da Esperança, que fica na Mooca. A reportagem busca mostrar entre os moradores do local, casos de paulistanos de classe média que faliram e foram morar em albergues.
O professor de inglês André da Mata, 46

RAMON COSTA OLIVEIRA, REPRESENTANTE COMERCIAL, 41

O baiano Ramon Costa Oliveira se orgulha de seus feitos na natação e de seus tempos de atleta. Fez quatro travessias marítimas da Grande Salvador percorrendo 14 quilômetros de distância e, em uma delas, conseguiu um honroso 6º lugar.

Cursou até o segundo ano de educação física antes de ser cativado pela atividade de representante comercial que exerceu até três anos atrás. No seu caminho profissional passou por seguradoras, como a SulAmérica, e grandes empresas alimentícias como Bunge e Master Foods.

"Era um bom nadador e sempre soube fazer negócios", diz Oliveira. "A minha decadência começou por causa do contato com as drogas e o álcool." Seu último trabalho depois de deixar a representação da Master Foods, em 2010, foi no negócio de venda de sacos de lixo. Tinha três funcionários contratados e atuava na região de Sorocaba e Itu, no interior de São Paulo atendendo o comércio varejista.

"O problema é que veio a crise e o custo do negócio subiu muito. Fiz alguns investimentos mal planejados e fiquei preso aos financiamentos", explica. Juntou-se a isso a separação da mulher. Oliveira tem um filho adolescente.

Como resultado, teve que demitir seus funcionários e encerrar sua empresa no final de 2014. Desde então vive uma peregrinação para tentar arrumar um novo emprego. "Fiquei completamente liso", diz. Chegou a voltar para Salvador para se recolocar no mercado e ficar mais perto do filho, mas não conseguiu nada.

"Depois que fechei a empresa, cheguei a ficar dormindo várias semanas no carro", lembra. Logo depois teve que vender o carro. Enfrentou também uma recaída no uso de drogas. Acabou voltando para São Paulo no começo deste ano e ficou 12 dias dormindo na rodoviária do Tietê, por não ter onde morar. Foi resgatado por assistentes sociais da prefeitura e, atualmente, está no albergue da rua Prates.

"Continuo em busca de trabalho e por enquanto estou tranquilo", conclui. "Mas no momento em que me vem a frustração, sinto que meus vícios podem voltar."

Avener Prado/Folhapress
Ramon Costa Oliveira. Pessoas na classe média que faliram e foram morar em albergues.
O representante comercial Ramon Costa Oliveira, 41

OH EU KWEON, VENDEDOR, 55

O coreano Oh Eu Kweon, 55, viu sua vida ruir nos últimos três anos, quando todas as portas de trabalho se fecharam para ele.

Trabalhou sempre com importações e exportações, primeiro na Coreia, onde estudou computação, e depois na América do Sul, por conta de relações de comércio. Decidiu emigrar para a região por causa do clima quente e porque viu oportunidades para se desenvolver profissionalmente.

Morou primeiro no Paraguai e, depois de duas viagens de turismo para o Brasil, quando fez alguns contatos de negócios, decidiu se radicar em São Paulo no final dos anos 1980. Antes, voltou à Coreia para se casar e ter uma mulher para cuidar dele, como diz. Retornou casado e conseguiu a identidade de estrangeiro em 1989.

"É muito difícil ver um coreano nas ruas, mas eu desandei por causa de algumas decepções e do álcool, que sempre me atraiu", afirma Kweon, que declarou ter bebido umas boas doses de cachaça Corote para conseguir dar entrevista. "Não sei dizer onde eu falhei, mas fiz coisas que não funcionaram."

Ao longo de sua vida profissional, Kweon trabalhou em várias lojas na rua 25 de Março e no Bom Retiro como vendedor e gerente. Envolveu-se no ramo de confecções e depois entrou no comércio popular de bijuterias, setor dominado hoje pelos coreanos da rua 25 de Março.

A situação para Kweon começou a desandar na última década, quando a mulher decidiu voltar para a Coreia por causa de dificuldades para aprender português e para se adaptar, ele conta. Os dois tiveram um filho brasileiro, que acompanhou a mãe.

Além disso, perdeu um bom emprego porque seu patrão foi à falência depois de ter vários contêineres de bijuteria retidos pela Receita Federal.

Nos últimos tempos, Kweon depende dos albergues municipais para viver com alguma segurança. Perdeu todos os documentos e conta com a ajuda dos assistentes sociais para conseguir as segundas vias. "Gosto daqui, mas sinto vergonha e sofro preconceito por ser oriental", afirma.

Avener Prado/Folhapress
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 05-09-2017: Oh Eun Kweon. Pessoas na classe média que faliram e foram morar em albergues. Foto feita no Complexo Prates, abrigo da prefeitura para pessoas sem teto. (Foto: Avener Prado/Folhapress, COTIDIANO) Código do Fotógrafo: 20516 ***EXCLUSIVO FOLHA***
O vendedor coreano Oh Eu Kweon, 55

RICARDO LUDKE, GERENTE, 57

Com dois cursos superiores incompletos –tecnologia em cooperativismo e processamento de dados–, ambos feitos em Santa Maria, onde cresceu, o gaúcho Ricardo Ludke, 57, teve uma boa carreira ao longo dos anos 1990, na rede de supermercados Real, hoje Big. Era gerente do setor de self-service e servia refeições para 1.700 pessoas por dia.

Casou, teve um filho, mas a vontade de se aventurar falou mais alto. Deixou o emprego e migrou para a Bahia, terra da mulher. Tentou a sorte em Salvador, mas como não conseguiu um bom trabalho, decidiu tentar de novo em Boston (EUA). Emigrou em situação ilegal e deixou a mulher e o filho no Brasil para resgatá-los quando estivesse em melhores condições financeiras.

Ao longo de seis anos, tentou a vida no exterior à base de subempregos. Trabalhou como jardineiro, lavador de carros, pedreiro e aprendeu a falar inglês fluentemente. Não conseguiu dinheiro para resgatar a família e, no começo de 2006, voltou para o Brasil. "A crise nos Estados Unidos começou a me afetar, faltavam vagas mesmo em serviços gerais e havia muita concorrência", lembra.

Com algumas economias, decidiu voltar a Santa Maria e montou uma creperia, que sobreviveu por poucos anos. Desde 2010, Ludke vinha trabalhando em churrascarias e restaurantes pelo Brasil como garçom e preparador de carnes. Ganhava entre R$ 2.000 e R$ 3.000 por mês.

"O álcool foi meu problema e a rotina de trabalho me levava a beber mais –nos dias de folga não fazia outra coisa." Trabalhou em churrascarias em Brasília e em SP. O último emprego foi em um restaurante em Caieiras, na Grande SP. Quando foi demitido, morou uma semana nas ruas antes de arrumar vaga no albergue da rua Prates, no centro.

Ludke tem quase 20 anos de contribuição para o INSS e, recentemente, tentou obter o Bolsa Família, mas não conseguiu. Vem fazendo tratamento contra o alcoolismo no Caps (Centro de Atenção Psicossocial). Perdeu contato com a mulher e o filho. "Temo muito a violência das ruas e ainda quero me acertar", diz.

Avener Prado/Folhapress
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 05-09-2017: Ricardo Ludke. Pessoas na classe média que faliram e foram morar em albergues.Foto feita no Complexo Prates, abrigo da prefeitura para pessoas sem teto. (Foto: Avener Prado/Folhapress, COTIDIANO) Código do Fotógrafo: 20516 ***EXCLUSIVO FOLHA***
O gerente Ricardo Ludke, 57

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