Folha de S. Paulo


Megainvasão leva medo, solidariedade e até chance de novo negócio no ABC

O churrasco de domingo teve uma convidada nova: uma lona azul pendurada na porta da garagem para afastar olhares curiosos. Atrás da proteção, a neta da aposentada Solange Souza, 63, brincava com seu tablet, já que agora não pode mais ficar sozinha na praça em frente de casa.

Do outro lado da lona, um vaivém de famílias inteiras sobe e desce a rua, até então tranquila, carregando enxadas, colchões, cavadeiras e até caixas de frutas. A poucos metros, uma vizinha aproveita o movimento para vender, na porta de casa, refrigerantes e cachorro quente.

A concorrência é grande. Bem ao lado, barracas improvisadas vendem churrasco grego, salgadinhos e espetos. A propaganda é feita aos gritos. "Isso aqui está parecendo a rua 25 de março", diz a pensionista Dulcineia de Souza, 58, enquanto prepara mais um cachorro-quente vendido a R$ 3 e de improviso na porta de sua garagem.

Tudo isso acontece há cerca de duas semanas em torno da até então pacata Vila Comunitária, que reúne cerca de 40 casas em uma espécie de oásis residencial em meio a fábricas de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

Editoria de Arte/Folhapress

A rotina dali mudou quando o enorme terreno no fim do conjunto de casas se transformou numa megainvasão liderada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

No lado oposto a esse terreno, onde foram montadas mais de 6.000 barracas, se enfileiram dez prédios de condomínios de classe média. Moradores assistem à movimentação das janelas e sacadas. Alguns usam seus celulares para filmar os sem-teto.

Entre os integrantes da ocupação, os olhares miram para cima, em direção às janelas, com a mesma desconfiança. No sábado (16), um tiro de chumbinho atingiu o braço de um acampado, e os líderes dos sem-teto acusaram moradores do prédio pelo ataque –a polícia investiga esse caso.

O movimento alega que o terreno estava vazio havia mais de 30 anos. A construtora MZM entrou com um pedido de reintegração de posse, sem sucesso por enquanto.

O clima é de tensão nessa espécie de "tríplice fronteira" entre sem-teto e moradores dos condomínios e da vila. No domingo (17), em cima de um carro de som virado para os prédios, Guilherme Boulos, líder dos sem-teto, deu o recado: "Os incomodados que se mudem. A gente veio para ficar. Podem se acostumar porque querendo ou não a gente vai ser vizinho de vocês".

Evelson de Freitas/Folhapress
Morador da ocupação limpa viela aberta entre os barracos
Morador da ocupação limpa viela aberta entre os barracos

A cozinheira aposentada Maria Regina Souza, 65, chora de nervoso ao falar sobre a convivência com os sem-teto. "Foi uma luta muito grande para construirmos essa vila para essas pessoas nos tornarem reféns nas nossas casas."

Era meia-noite de uma sexta quando ela foi acordada pelo neto. Assustado com a chegada de três ônibus na rua estreita de casa, ele chamou a avó. "Estão invadindo a vila."

Para forçar o esvaziamento do acampamento, moradores dos condomínios da região têm organizado manifestações.

"Estamos aterrorizados. Tiraram nosso sossego", diz Solange, que mora na Vila Comunitária há mais de 30 anos.

Moradores dos prédios compartilham em um grupo de WhatsApp fotos da ocupação. Uma delas mostra uma fossa construída a poucos metros do muro que dá acesso aos prédios. "Trabalhamos muito para pagar o lugar onde moramos. Não somos essa elite preconceituosa. Mas estamos preocupados com nossa segurança e a falta de saneamento básico", diz a empresária Claudia Baffe, 42.

"Não saímos mais de casa tranquilos", diz o feirante Lourival Stabille, 50, que mora em apartamento com vista para a ocupação.

CHURRASCO

Entre as duas ruas que formam a vila, há uma praça e uma quadra. No domingo, um grupo de ocupantes assava carnes em uma churrasqueira improvisada. "As crianças viviam soltas nessa praça, agora ficam trancadas dentro de casa", diz Solange.

Por outro lado, há vizinhos que apoiam o movimento e até se beneficiaram com a novidade. A doceira Rosa da Silva, 61, escalou o filho e a nora para ajudá-la a vender refrigerantes, café, doces e sanduíches na porta de casa. A bancada fica em local estratégico, a poucos metros da escada que dá acesso à ocupação. "Todo mundo precisa de ajuda, não custa ser solidário."

Ela conta que cobra R$ 5 pelo banho e R$ 2,50 para carregar o celular, mas abre algumas exceções. "Não cobro de quem quer dar um banho nas crianças nem de grávidas que pedem para usar o banheiro."

Na casa em frente, a pensionista Dulcineia faturava com cachorro-quente. "Até perdi a conta de quantos já vendi. Tem três desempregados aqui em casa, precisamos aproveitar para ganhar um dinheiro."

A maioria dos moradores ali participou de um mutirão no início dos anos 1980, quando o terreno foi vendido pela Mitra Diocesana de Santo André. As casas foram construídas pelas próprias famílias.

Após um longo processo, as escrituras só foram entregues pela Prefeitura de São Bernardo em 2011, dentro do programa de Regularização Fundiária, do governo federal. "Ergui essa casa tijolo por tijolo, com minhas próprias mãos. É justo essas pessoas quererem isso também", diz Rosa.


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