Folha de S. Paulo


Carioca se arma em meio ao aumento da violência e à grave crise financeira

Lucas Landau/Folhapress
 RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 08-09- 2017, 10h00: Marcelo Carvalho, 42, não concorda com a segurança privada. Em decorrência da violência, moradores do bairro Vila Kosmos, Zona Norte do Rio de Janeiro, providenciaram segurança particular fechando as ruas com guaritas e cancelas na tentativa de inibir assaltos. (Foto: Lucas Landau/Folhapress, COTIDIANO) ***EXCLUSIVO FOLHA***
Marcelo Carvalho, 42, morador da Vila Kosmos, bairro na periferia do Rio de Janeiro

Mônica Marques, 62, não sai mais a pé à noite. Fátima Costa, 55, deixou de estacionar de carro na porta de casa. Rogério Medeiros, 32, chegou ao ponto de comprar uma pistola para se defender.

O aumento dos índices de violência no Rio e a crise financeira do Estado têm suscitado sensação de desalento em relação à segurança pública, sentimento inflamado pelas redes sociais e que tem provocado mudanças no comportamento da população, mesmo em regiões mais seguras.

Amedrontados e descrentes do poder público, muitos se fecham, enquanto outros tentam fazer segurança com as próprias mãos.

Um exemplo desse clima está no bairro de Vila Kosmos, na periferia do Rio. Lá, onde as pessoas costumavam bater papo em frente ao portão sentadas em cadeiras de praia, a prefeitura autorizou a instalação de guaritas e a contratação de vigilantes.

O bairro fica perto de favelas controladas pelo tráfico e é atravessado por uma via expressa, o que facilita a fuga de criminosos.

É atendido pelo 41º batalhão, um dos mais conflagrado do Estado e campeão de mortes causadas por policiais entre janeiro e julho deste ano (81). Foi ainda o quinto pior em número de mortes violentas (221) e roubos (9.016).

"A gente chegou a ter cinco roubos por dia aqui. Quando percebemos que o Estado não ia conseguir resolver o problema, resolvemos agir", diz Everton Bitencourt, 57, que articulou a permissão para proibir que "veículos estranhos aos moradores" tenham acesso às vias públicas.

A medida não é unanimidade. "Não adianta criar feudos. Do jeito que está temos uma falsa sensação de segurança. É só passar da cancela e você está exposto", diz o morador Marcelo Carvalho, 42.

Mortes violentas no RJ* - No 1º semestre de cada ano

FAROESTE

A descrença fez Rogério Medeiros, 32, adquirir uma pistola. Ele, que diz ter o certificado para prática de tiro esportivo, agora tenta autorização da Polícia Federal para usar a arma fora de casa.

Medeiros mora com a mãe em Icaraí, bairro de classe alta de Niterói, na região metropolitana do Rio.

"A cidade já vem virando um faroeste há um tempo. Quando vi os policiais sem receber, comecei a ficar desesperado", disse.

A Folha solicitou à Polícia Federal dados sobre aquisição de arma de fogo no Estado, mas não teve resposta.

O número de autorizações concedidas pelo Exército para acesso a arma de fogo mais que dobrou de 2015 para 2016 (414 contra 853) na região militar que inclui Rio e Espírito Santo. No entanto, essa tendência de aumento se dá no restante do país.

Ainda segundo o Exército, de janeiro a junho deste ano, foi constatado um aumento de 12% na procura de blindagem de veículos em relação ao mesmo período de 2016.

DIVISÃO DAS MORTES VIOLENTAS -

CRISE

Devido à crise dos cofres públicos, servidores da segurança passaram meses com os salários atrasados e até hoje não receberam o 13º do ano passado, os pagamentos extras por trabalho na folga estão atrasados e o bônus por atingir metas de redução dos indicadores de criminalidade não é pago desde 2015.

Ignacio Cano, do Laboratório da Análise de Violência, da Uerj (Universidade do Estado do RJ), diz que, historicamente, sempre que houve aumento da violência, a população se retraiu. "Acontece em todas as classes sociais. Os mais ricos botam câmeras, blindam carros. Os mais pobres cercam as casas, compram cachorros", diz ele.

Outros crimes -

PARANOIA

Joviana Quintes Avanci, pesquisadora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde da Fiocruz, afirma que a sensação de insegurança tende ser exacerbada pela presença constante do assunto no noticiário e nas redes sociais.

Em Botafogo, na zona sul, Mônica Marques, 62, parou de frequentar um centro espírita porque os encontros aconteciam à noite. Seu pânico aumenta devido às redes sociais, diz. Grupos alertam sobre ocorrências e espalham o medo. "Eles são úteis, mas ao mesmo tempo deixam a gente paranoica", diz ela.

Os roubos de rua aumentaram 30% nessa região em relação ao mesmo período de 2016 –foram 1.112 no ano passado, contra 1.438 neste ano.

No entanto, Regina Chiaradia, 61, presidente da Associação de Moradores de Botafogo, acha que se retrair não é melhor saída.

"Não dá para virar avestruz. Quanto mais você ocupa espaços públicos, melhor. Temos que cobrar do poder público e não nos retrair", diz.

Miguel Calmon, psicanalista membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio, diz que não se deve subestimar o impacto da insegurança na saúde mental.

"Diante do desamparo, a população fica infantilizada. Sem meios de impedir a violência, recorre a atitudes extremas para se sentir protegida. É uma ilusão, mas é compreensível. As pessoas não devem se sentir humilhadas porque sentem medo."

SAÚDE MENTAL

Pesquisadores que estudam o impacto da violência urbana na população dizem ser consenso na literatura acadêmica o prejuízo à saúde mental diante do avanço de índices de criminalidade.

"Em lugares mais conflagrados, como nas favelas do Rio de Janeiro, esses efeitos são comparáveis aos vistos em situações de guerra", diz Joviana Quintes Avanci, pesquisadora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde da Ensp/Fiocruz.

O transtorno mais grave que advém da exposição à violência é de estresse pós-traumático.

Pesquisa acerca desse transtorno, realizada por UFRJ, Unifesp, Fiocruz e UFF, mostra que 89% da população do Rio já foi exposta a algum evento traumático ao longo da vida.

Estudo ainda não publicado feito pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com base em dados de 2015, indica que pelo menos 20% da população fluminense sofre desse transtorno. Outros 31% apresentam parte, mas não todos os sintomas desse transtorno.

O estudo indica ainda que o transtorno passa quase sempre despercebido. Em 98% dos casos, por exemplo, ele nem sequer é identificado pelos médicos em exames clínicos convencionais.

"Ele é frequentemente comórbido com outros transtornos mentais, como depressão, transtornos de ansiedade, abuso de álcool e drogas, entre outros, o que pode mascarar os sintomas de transtorno de estresse pós-traumático e ele não ser identificado ou confundido com outro transtorno", diz Herika Cristina da Silva, coordenadora do estudo.

"Falar sobre os eventos traumáticos é algo muito difícil, pois causa um intenso sofrimento às pessoas que passaram por ele", completa a pesquisadora.


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