Folha de S. Paulo


Depoimento

Acidente não é o único fantasma de quem viaja pelos rios do Pará

Marlene Bergamo/Folhapress
ESPECIAL ABUSO E EXPLORAÇAO INFANTIL - Ilha do Marajo - PA - Meninas e meninos usam canoas para tentar vender ou ganhar alimento e óleo combustível dentro de grandes barcas que atravessam o Rio Tajapuru levando caminhões. Muitas vezes acontecem casos de abuso e exploração sexual dessas crianças. - 05/2017 - Foto - Marlene Bergamo/Folhapress - 017 - EXCLUSIVO***
Crianças remam canoas para escalar balsas de caminhoneiros em rio no Pará

O viajante habituado ao conforto dos voos comerciais de grandes companhias aéreas sente o choque cultural quando pisa em embarcações como a que naufragou na terça (22) no rio Xingu, no Pará.

O naufrágio não é o único fantasma enfrentado cotidianamente por quem vive nos municípios ribeirinhos da região amazônica. Assaltos de piratas, risco de explosões por combustível carregado em condições inadequadas e prostituição infantil são outras dores de quem vive às margens dos rios.

Onde as estradas são raras, os barcos se impõem como único meio de locomoção.

Quem viaja pelos rios amazônicos vê crianças de colo doentes atravessando quilômetros atrás de um hospital que falta em suas localidades, comerciantes em busca de aprovisionamento e trabalhadores cujo salário é insuficiente para pagar o trajeto diário e por isso precisam recorrer a caronas e transporte clandestino.

Assim, as empresas de embarcações sem registro convivem nos portos ao lado de companhias de rede autorizadas. É comum navegar em barcos em que o número de passageiros supera o de coletes salva-vidas. Cadeiras de plástico entopem os corredores para atender mais viajantes. O passageiro que precisa levar sua motocicleta estaciona o veículo obstruindo a saída.

Durante a apuração de uma reportagem da Folha, em maio, cruzei rios paraenses em barcos de todos os portes, desde trechos de meia hora numa pequena canoa adaptada com motor, chamada de rabeta, até os catamarãs mais velozes e grandes navios de companhias autorizadas, onde os passageiros amarram suas redes para trajetos de mais de dez horas de viagem.

Sem pontualidade, os barcos clandestinos costumam quebrar, atrasando universitários que cursam ensino a distância, modalidade que cresceu como opção de formação nos rincões, mas parte da carga horária precisa ser cumprida presencialmente, em cidades de maior porte.

Quando um barco quebra num desses rios, a reação inicial é de tensão. Não pelo atraso, mas pelo medo de que sejam piratas se aproximando em outra embarcação mais potente. Eles sinalizam com um tiro para o alto antes de invadir e assaltar os passageiros, uma ação mais comum no calendário de pagamento do seguro defeso, quando os pescadores de pequenas localidades viajam para buscar seu dinheiro. Por isso é frequente encontrar gente armada em viagens noturnas.

Nas palavras de um ribeirinho, esses rios são como uma grande avenida, onde, eventualmente, uma rabeta se choca com um barco maior escondido atrás da curva. Por ali transitam barqueiros em pequenas lanchas, conhecidas como voadeiras, que atravessam sem colete salva-vidas, levando galões de gasolina para se abastecerem na volta.

Nos trechos estreitos, a cena mais triste é ver crianças de famílias miseráveis descendo das palafitas e remando atrás das balsas de caminhoneiros que escoam a produção entre Manaus e Belém. Numa escalada arriscada, elas saltam para dentro da balsa em movimento, levando produtos para fazer comércio ambulante ou prostituição.


Endereço da página:

Links no texto: