Folha de S. Paulo


Sem-teto deslocados por Doria 'criam' barril de pólvora sob viaduto de SP

Danilo Verpa/Folhapress
Moradores de viaduto na praça 14 bis em suascasas improvisadas
Moradores de viaduto na praça 14 bis em suascasas improvisadas

Pedaços de frango fritam numa panela sobre um fogão de quatro bocas, enquanto Emerson Rafael da Silva Aguiar, 25, ajeita a cama onde dorme com a namorada e mais dois cachorros.

Um barraco de madeira de aproximadamente 4 m² debaixo do viaduto Plínio Queiroz, na Bela Vista (região central), é a moradia da família dele desde o início do ano.

Ele e outros moradores de rua da praça 14 Bis assistiram à primeira atuação do prefeito João Doria (PSDB) como gari, em seu segundo dia de mandato (2 de janeiro).

Até aquela data os moradores de rua viviam espalhados pela praça e arredores, quando o tucano autorizou que todos se acomodassem sob o viaduto por 90 dias.

Vencido o prazo, aquilo que seria transitório e com prazo definido, virou fixo, e a gestão ainda não achou a solução para o impasse na Comunidade 14 Bis, nome dado ao espaço pelos moradores.

Sob o viaduto, há bastante material inflamável –além das casas de madeira, há papelão e outros objetos recicláveis, já que boa parte das pessoas que moram ali sobrevivem como catadores.

Para integrantes da prefeitura, é um barril de pólvora. Uma panela esquecida no fogão ou uma bituca de cigarro podem virar uma tragédia. A comunidade é cercada por um alambrado, com apenas um portão de acesso.
Esse alambrado ganhou uma tela verde na mesma semana em que Doria esteve no local, o que passou a esconder os inquilinos dos olhos dos que passam pela região a pé ou estão parados dentro dos carros no trânsito travado da região da 14 Bis.

"O Doria que colocou a gente aqui. Podemos sair, mas com lugar certo para ir", afirma Aguiar. "Estão fechando o cerco. Deixaram a gente ficar aqui e agora querem tirar", disse Aguiar.

"Fechar o cerco", na visão dele, é forçar a saída dos 46 moradores da área de uma forma espontânea. Uma das estratégias para isso, segundo ele, foi retirar três banheiros públicos instalados ali pela própria prefeitura.

A sugestão dele para que deixem o lugar é autorizá-los a ocupar prédios vazios na região central. "A cidade é cheia disso. Porque não liberam algum para a gente ficar?", questiona.

"Eles disseram que iriam trazer lixeira para a gente aqui também. Nada. Sem os banheiros, a gente faz as necessidades no saco e joga fora daqui", explica João Paulo Silva de Souza, 35.

Segundo a Folha apurou, a prefeitura quer evitar uma retirada à força. Busca uma solução "silenciosa", na base do convencimento, em vez de optar por uma ação policial ou com agentes da guarda municipal, por exemplo.

Os quatro barracos visitados pela reportagem na semana passada tinham não só fogões, mas também camas de casal e sofás. A moradia do casal Michele Alves, 22, e Henrique Alves, 23, tem ainda uma despensa e algumas plantas

BARRACO

"A gente se sente segura aqui. Levaram a gente para conhecer o Complexo Prates [abrigo na região da Luz, no centro]. Chegando lá, não gostaram porque eu sou transexual. Ameaçaram a gente", afirma Michele.

Eles dividem o espaço com outro casal, Fernando Silva, 23, e Naiá Ferreira, 26.

Enquanto compartilhavam um macarrão instantâneo, mostraram à reportagem a organização do barraco, com a louça lavada numa pia.

"Aqui é gente de bem, não entra droga, ninguém aqui é de cracolândia", diz Naiá.

Muitos dos moradores dali buscam ajuda para alimentação em entidades assistenciais da região.

Agrupados no espaço protegido pela tela e com portão de entrada, os moradores de rua mal são percebidos por quem passa pela praça.

Os condôminos do edifício Guatemala, em frente à 14 Bis, por exemplo, não se incomodam com os sem-teto.

"Eles ficam bonitinhos no viaduto. Antes era ruim porque ficavam na porta do prédio. Quem vinha para comprar ou alugar apartamento desistia na hora", disse Dircéa Quintino de Oliveira, 67, síndica do prédio que abriga cerca de 250 moradores.

Segundo ela, desde o início do ano há um carro da Guarda Civil Metropolitana fixo nessa área. "É bom porque protege a gente e os próprios moradores do viaduto, que estão expostos. A gente tem pena", afirma.

SOLUÇÃO

A gestão Doria informou em nota que reduziu o número de moradores sob o viaduto. "Em janeiro, quando a prefeitura iniciou o diálogo com as pessoas em situação de rua sob o viaduto da Praça 14 Bis, havia cerca de 120 moradores na região. Apenas um terço continua no local, cerca de 45", diz.

De acordo com a prefeitura, após as abordagens e os encaminhamentos, "grande parte destas pessoas foi acolhida e cerca de 10 pessoas empregadas pelo programa Trabalho Novo [que oferece oportunidade aos sem-teto]".

Por fim, a gestão municipal afirma que agentes sociais continuam o trabalho de aproximação com abordagens três vezes ao dia aos moradores e que há dez mil vagas em albergues.

"Nos equipamentos de assistência social as pessoas podem ter boas condições de higiene e contam com instalações onde podem tomar banho, fazer refeições, lavar suas próprias roupas e pernoitar", afirma. Sobre os banheiros químicos, diz apenas que o contrato com a empresa não foi renovado.


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