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Capitais criam 'orçamentos paralelos' para ocultar gastos e fechar as contas

Gabriela Leite/Divulgação
Gari limpa bueiro em Porto Alegre; gestão diz que maior parte de contratos sem empenho era de limpeza
Gari limpa bueiro em Porto Alegre; gestão diz que maior parte de contratos sem empenho era de limpeza

Em Porto Alegre, os gastos corriam na "prateleira". Em Curitiba, ficavam num sistema paralelo ao oficial. No Rio, mesmo depois de executadas, as despesas desapareceram ao serem apagadas do sistema por um "servidor fictício".

Com receitas bilionárias, os três municípios descobriram "orçamentos paralelos", descolados das contas oficiais e nos quais centenas de gastos eram feitos de maneira informal, sem nenhum tipo de registro no orçamento.

A prática é recorrente também em outras cidades e perniciosa para o equilíbrio das prefeituras, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

Além de proibida por lei, mascara e distorce a real situação das contas públicas.

"É um absurdo total", diz o economista Raul Velloso. "Mas os prefeitos preferem correr o risco."

O "caixa dois" começa quando o gestor manda executar uma despesa sem realizar o empenho –a primeira e obrigatória etapa do gasto público. Empenhar é, basicamente, reservar espaço no orçamento para que a despesa seja paga no futuro. Está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal e na Lei de Finanças Públicas, de 1964.

"Muita gente acha que isso é burocracia. Mas não é, é garantia", diz o economista Darcy Francisco, especialista em contas públicas.

Sem o empenho, a despesa pode até ocorrer, mas é virtual, não existe oficialmente. O compromisso de pagamento é como se fosse algo apalavrado: quando tiver dinheiro, o gestor empenha e paga. Com a mudança de prefeitos, porém, corre-se o risco de que a despesa não seja reconhecida ou nunca seja paga.

Editoria de Arte/Folhapress/Editoria de Arte/Folhapress

CRISE

A justificativa para o "orçamento paralelo", segundo ex-gestores, é a crise financeira. Mesmo sem receitas, eles afirmaram ter optado por realizar gastos sem empenho -algumas vezes, na expectativa de que a situação melhorasse ao longo do ano. "Não foi o que aconteceu", diz Eroni Numer, ex-secretário de Finanças de Porto Alegre.

Municípios têm uma margem menor para gerar receitas do que Estados ou o governo federal, afirma o economista Raul Velloso. No fim de mandato, também não podem deixar restos a pagar sem dinheiro em caixa, sob pena de serem punidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. "A única coisa que resta é correr o risco de não fazer o empenho", afirma Velloso.

A gestão de Marchezan Júnior (PSDB), em Porto Alegre, disse ter encontrado R$ 120 milhões em despesas "na prateleira", ou 1,7% do orçamento oficial. A maior parte era em limpeza pública, de contratos assinados, mas sem empenho.

Numer, da gestão de José Fortunati (PDT), questiona o levantamento e diz que apenas R$ 53 milhões ficaram na prateleira, segundo ele, em razão de fortes chuvas que geraram gastos extras com limpeza urbana e assistência.

Sem recursos, a prefeitura preferiu autorizar o gasto e "ir tocando", na expectativa de conseguir dinheiro depois. "Tem horas que tem que colocar o interesse da população à frente. Não podíamos deixá-la desguarnecida", afirma.

"Era para tentar que a cidade não parasse. Foram áreas de escolha", comenta a ex-secretária de Finanças de Curitiba Eleonora Fruet, que atribui o problema à crise "sem precedentes".

O atual prefeito Rafael Greca (PMN) acusa o antecessor Gustavo Fruet (PDT) de ter deixado R$ 614 milhões de despesas sem empenho, quase 7% do orçamento oficial.

A maior parte das despesas ocorreu nas pastas de Saúde e Educação. Os gastos sem empenho estavam incluídos em uma planilha informal, criada para outras funções.

Fruet afirma que o valor está "inflacionado" por despesas indevidas, como reajustes contratuais que não foram negociados e valores anteriores à sua gestão.

No Rio, a gestão do ex-prefeito Eduardo Paes (PMDB) disse que seu objetivo ao cancelar empenhos era obedecer a orientação do Tribunal de Contas, para que a prefeitura não deixasse despesas não executadas para próximos exercícios. A medida, porém, acabou fazendo "desaparecer" gastos que haviam sido, de fato, realizados. A medida está sob análise do Tribunal de Contas do Município.

POLÍTICA

Outro fator pode ter pesado para o aumento da "nuvem orçamentária" no ano passado, segundo secretários e especialistas ouvidos pela Folha: as eleições municipais.

Gestores preferem autorizar o gasto, mesmo sem orçamento, a deixar de cumprir promessas políticas.

"Muitas vezes, o secretário é o último a saber. É igual marido traído", diz Leonardo Busatto, atual secretário de Fazenda de Porto Alegre.

Em alguns casos, eles afirmam ter ouvido de outros secretários que o orçamento paralelo só vira assunto de domínio público no caso de desafetos políticos, ou em tempos de crise. Do contrário, a dívida é quitada ao longo da gestão, sem repercussões.

A capital gaúcha vai parcelar o pagamento das dívidas da "prateleira", mas só a partir do ano que vem. Em Curitiba, a prefeitura está organizando um leilão: recebe antes quem oferecer o maior desconto. "O que estamos fazendo é colocar a cidade dentro do orçamento", diz o secretário de Finanças Vitor Puppi.

FISCALIZAÇÃO

Economistas atribuem a prática reiterada do "orçamento paralelo" à falta de fiscalização por parte dos Tribunais de Contas dos municípios.

"Vira hábito porque os prefeitos sabem que não vão ser fiscalizados", diz o economista Amir Khair, mestre em finanças públicas. "Tribunais não cumprem sua função técnica, porque são basicamente formados por políticos."

Em Curitiba, o problema das despesas sem empenho já ocorrera no mandato anterior, em 2012: foram R$ 364 milhões em dívidas sem registro no orçamento, segundo o Tribunal de Contas, ou quase 6% das receitas totais da cidade.

"A situação revela o descontrole existente quanto à execução financeira e orçamentária, deixando dúvidas sobre a sua efetividade", escreveu a Diretoria de Contas Municipais do Tribunal de Contas do Paraná, que recomendou a aplicação de multa aos responsáveis pelos atos.

Quatro anos e uma eleição depois, o caso, no entanto, ainda não foi julgado –de acordo com o tribunal, em função do número de recursos e contraditórios, de acordo com "as exigências da legislação".

EM CAIXA

O ex-prefeito Luciano Ducci (PSB) diz que "o número é ainda menor do que o apontado" e afirma que deixou dinheiro suficiente em caixa para cobrir as despesas.

No Rio Grande do Sul, a prática também é recorrente: a prefeitura de Porto Alegre já foi alertada duas vezes pelo Tribunal de Contas sobre o problema, em 2008 e 2012.

O Ministério Público Estadual recomendou multa e a desaprovação das contas.

Os conselheiros, porém, aprovaram as contas de 2008 por entender que as falhas eram "de natureza formal, não prejudiciais ao erário". O julgamento de 2012 ainda não foi concluído.

SEM BURLA

No Rio, o Tribunal de Contas do Município também aprovou as contas de Eduardo Paes (PMDB), porque os conselheiros consideraram que não houve burla jurídica ou maquiagem relevante.


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