Folha de S. Paulo


Livro narra com riqueza o avanço de facção sobre o narcotráfico no país

Reprodução- 16. jun.2016/Twitter/ABC digital
Metralhadora antiaérea usada no ataque ao traficante Jorge Rafaat Toumani, morto no Paraguai
Metralhadora antiaérea usada no ataque ao traficante Jorge Rafaat Toumani, morto no Paraguai

O leitor acostumado a julgar o livro pela capa, ou pelo título, poderá equivocar-se ao supor que "Cocaína, a Rota Caipira" –lançado em maio pela editora Record– se resuma à rotina do tráfico regional no interior de São Paulo. Algo menor.

A obra do jornalista paulista Allan de Abreu é, ao contrário disso, um dos mais profundos trabalhos jornalísticos sobre o narcotráfico internacional feito a partir desse importante corredor de drogas no país e ainda sobre o avanço do PCC no domínio dessa rota.

Assim, o cenário comum das terras paulistas, o "mar sem fim das canas-de-açúcar" e suas estradas de terra ocres, torna-se o pano de fundo –ou o fio condutor– das dezenas de histórias narradas nos 29 capítulos do livro.

Cada um deles tem começo, meio e desfecho. Falam, em sua maioria, sobre a ascensão e a queda de traficantes de alguma forma ligados à rota caipira desde o início da década de 90 até a atual guerra pelo monopólio do narcotráfico no país.

Sobre essa batalha, merece destaque a descrição do assassinato do traficante Jorge Rafaat Toumani, 56 –Sadam, o "rei da fronteira"–, morto com tiros de metralhadora.50, em 2016, no Paraguai.

A maior parte dos nomes trazidos às 823 páginas do livro é de pessoas desconhecidas –anônimos para os leitores comuns–, de pilotos de avião, "mulas", traficantes e policiais. Mas há personagens como o juiz federal Sergio Moro, o doleiro Alberto Youssef e também o ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame.

Este último aparece atuando em operações da Polícia Federal pelo interior de São Paulo nos anos 2000, quando ainda era agente (depois viraria delegado), no combate ao narcotráfico. A experiência, segundo o autor, seria usada por Beltrame na implantação das UPPs cariocas.

Outros nomes conhecidos, como o do libanês Hussein Ali –suspeito de traficar para a Europa–, dão a dimensão do poder de alguns traficantes.

Pelos diálogos citados, com base em escutas telefônicas, ele tinha livre trânsito com embaixadores, políticos e autoridades brasileiras, círculo de amizade que pode ser medido nesta conversa monitorada pela PF sobre fato ocorrido em 2014: "Eu te falei terça-feira", disse o colega, "que eu fiz um jantar para Michel Temer [então vice-presidente] e para o presidente do Supremo, [Ricardo] Lewandowski. Eu tinha convidado ele [alvo do assunto] também, e ele perguntou de você. Eu falei para ele que te ligaria".

Procurada, a assessoria de Temer disse que o presidente não pode ser "responsável pelo círculo de amizades de pessoas com quem tem relações pessoais".

Não serão, porém, essas as personalidades que deverão ser lembradas. Mais marcantes são situações como a da modelo Lucinéia Capra, que, após envolver-se com um traficante, entrou para o crime. Ela escapou de operação policial há cerca de 14 anos e nunca mais foi vista.

Também se destaca o drama de Lucas Rafael Bega da Cunha, 20, que decidiu virar "mula" e transportar cocaína no estômago para a Europa. Um colega registrou em diário os dias de agonia do rapaz que, ao chegar ao destino, não conseguiu expelir as cápsulas e morreu de overdose.

Triste também é a morte do policial federal Fábio Ricardo Paiva Luciano, em 2013, ferido no peito com um tiro de fuzil durante uma operação em Bocaina, na região de Bauru.

Por outro lado, há algumas passagens cômicas, como a de um traficante que foi preso após ser reconhecido pela fralda geriátrica que usava. E também o da mulher septuagenária que enfrentou policiais da PF ao ver o filho ser preso por tráfico. "Seus canalhas, prendem o meu filho enquanto tem tanto bandido perigoso solto por aí", berrou ela.

Cocaína - A Rota Caipira
Allan de Abreu
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Mesmo o livro sendo baseado, em parte, em milhares de papéis oficiais e em entrevistas com autoridades, o leitor não se cansará com as reproduções desnecessárias de documentos ou com os elogios ao trabalho policial.

O livro poderá decepcionar, porém, pessoas acostumadas aos clássicos romances policiais. Além de não haver protagonistas ou antagonistas claros, é praticamente impossível guardar os nomes dos mais de 500 personagens.

Mas até isso pode ser visto como algo positivo. Não há omissões de nomes importantes (a não ser as dos que correm risco), sejam criminosos comuns ou aqueles que usam distintivo de polícia ou toga.

Cocaína - A Rota Caipira
Autor: Allan de Abreu
Editora: Record
Quanto: R$ 59,90 (823 págs)


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