Folha de S. Paulo


'Estrangeiros' na Oscar Freire, sem-teto terão que deixar prédio invadido

Danilo Verpa/Folhapress
SAO PAULO - SP - 14.07.2017 - Predio na esquina da Oscar Freire com a Peixoto Gomide e ocupado por pessoas sem teto. (Foto: Danilo Verpa/Folhapress)
Prédio na rua Oscar Freire convive com invasões há dez anos

Com quase R$ 9.000 atribuídos ao metro quadrado de suas edificações, a cidade de São Paulo frequenta posições elevadas em rankings de preços de propriedades –e tem na Oscar Freire, nos Jardins (zona oeste), um símbolo da valorização imobiliária, com grifes como Calvin Klein, Mont Blanc e H.Stern.

Em um antigo prédio nessa via, na esquina com a rua Peixoto Gomide, vivem mais de 40 famílias de sem-teto desde fevereiro de 2016. São como "estrangeiros" no reduto da elite, com costumes e estilo que se chocam com os de moradores, comerciantes e frequentadores da área.

"Há problemas com ratos, insetos e mau cheiro. Somos uma loja de gestantes. Temos clientes que chegam e vão embora. Outras ligam para saber como está o mau cheiro, que é insuportável e piora com o calor. Já apareceram baratas em cima de roupas", diz Gisele Alves, 40, funcionária de uma loja vizinha.

"Temos medo. Já parou um carro de polícia e havia um fugitivo morando no prédio, que então foi levado", completa, queixando-se também de que eles ouvem músicas em alto volume e com palavrões.

"Precisamos ter preparo psicológico para morar aqui, porque a discriminação é maior do que em qualquer outro lugar. Os vizinhos passam xingando, jogam pedras", diz Armando Lira, 58, designer gráfico que está no prédio desde a invasão do ano passado.

"Não temos o padrão aristocrático dos Jardins, e por isso não gostam da gente. Não gostam da minha aparência de sofrimento e da minha roupa surrada. Passam do outro lado da rua", completa.

A arquitetura art déco de 1952 hoje tem a fachada recoberta de grafites coloridos e de cartazes variados –alguns artísticos, outros de propaganda. Um garoto de 5 anos que passou a viver lá com os pais nos últimos dias diz à reportagem não gostar do local por causa dos "pixos", mas que a Pantera Cor-de-Rosa estampada ao lado do portão de entrada não é de todo ruim.

Com tamanhos entre 52 e 88 metros quadrados de área útil, os apartamentos distribuídos pelos quatro andares abrigam por volta de 200 pessoas. Famílias inteiras ocupam pequenos espaços dos apartamentos, como cozinhas, salas e quartos.

"Fazia limpeza de hotéis, lavava louças, ajudava na cozinha. De um ano e meio para cá, com a crise, nunca mais me chamaram", afirma Janaina Garcia, 59, que estava em outra invasão e chegou à Oscar Freire há uma semana.

Quando atendeu a Folha, seus cabelos brancos estavam cobertos de fiapos –"estou vendendo panos de prato, porque recebo uma pensão de R$ 400 apenas". "Evito morar na favela porque lá é tristeza, morte, violência. Tenho medo de o meu filho se envolver com o crime. Em um ambiente melhor, ele vai conviver com gente melhor", afirma.

O odor de que reclamam os vizinhos advém do vazamento de esgoto que desemboca na Oscar Freire. "Podemos perder o prédio a qualquer momento. Não temos dinheiro para consertar o esgoto. Por causa disso, ninguém que mora aqui quer cuidar do prédio", afirma Lira.

De fato, a ocupação está com os dias contados. Na terça-feira (11), um mandado de reintegração de posse foi expedido pela Justiça em favor da Santa Alice Hotelaria e Construções, empresa que desde 2004 tem sete das nove moradias do prédio.

HISTÓRICO

O edifício Peixoto Gomide convive com invasões de sem-teto há dez anos.

Em 2004, a Santa Alice comprou os apartamentos visando a construção de um grande condomínio. A taxa condominial foi elevada para R$ 6.900, o que foi visto pelos proprietários dos dois apartamentos restantes como uma tentativa de forçá-los a negociar as propriedades.

Três anos depois, um grupo de sem-teto passou a habitar os apartamentos da Santa Alice. Para os proprietários minoritários, eles teriam sido convidados pela própria empresa a entrar no local.

"O auge da escaramuça foi forjar a invasão. Moradores de rua foram arregimentados pela Santa Alice e alocados nos apartamentos, o que inviabilizou o uso dos outros dois apartamentos, que então foram deixados pelos meus clientes e também invadidos. O prédio virou um pardieiro", afirma Pedro Giberti, advogado que representa os proprietários minoritários. A Santa Alice não retornou aos contatos feitos pela reportagem desde a semana passada.

No final de 2007, a Prefeitura de São Paulo interditou o prédio e as pessoas que lá estavam foram removidas.

Em 2015, membros do grupo chamado União dos Sem-Teto (UST) invadiram o local, que então passou a ser habitado majoritariamente por haitianos. Meses depois, tiveram que sair, após reintegração de posse. Os atuais moradores dizem não ter vínculos com movimentos organizados; no processo, a Santa Alice argumenta que eles fazem parte do Movimento Moradia Trabalhadores (MMT).

Alguns dos que trabalham na região há anos dizem que os atuais ocupantes do prédio são os mais discretos.

"Comercialmente não é legal. Os clientes reclamam muito, dizem que deveríamos tomar alguma atitude na Justiça. De todas as ocupações, esse pessoal é o que menos dá trabalho. Estão sempre com as portas e janelas fechadas, quase não aparecem, não estendem faixas nem fazem barulho. Parece ser um lugar abandonado", conta Deyvson Gomes, gerente da Frutaria São Paulo, restaurante que dá de frente para o imóvel.

A iminente saída dos sem-teto não significa que o imbróglio terá resolução simples.

"Não há condições de moradia. Acredito que os apartamentos serão selados até que se possa decidir o que fazer. Mas a relação com a Santa Alice hoje é uma interrogação", diz Giberti, acrescentando que o futuro do local está em aberto. Assim como o de seus atuais residentes.

"Não tenho outro lugar para ir. Se eu pudesse pagar aluguel e escolher, estaria em outro lugar", afirma Janaina.


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