Folha de S. Paulo


Roberto Ferreira, 56

Professor usa música para acalmar crianças em meio a tiroteios no Rio

Resumo Roberto Ferreira, 56, é professor em uma escola municipal do Rio, em Paciência, na zona oeste da cidade, onde há presença de tráfico e milícia. No mês passado, em meio a um tiroteio do lado de fora, ele reuniu os alunos em um corredor da escola e passou a tocar e cantar para eles. Um vídeo com essa cena viralizou após o secretário de Educação postá-lo na internet.

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Acho que você poderia dizer que sou um mediador entre dois mundos. Por meio da música, das letras das canções, meus alunos acabam conhecendo um universo além daquele de onde eles vêm, que é cheio de violência. Não diria que consigo mudar vidas, mas apresento novos mundos.

Naquele dia [do tiroteio], tudo aconteceu como sempre acontece: inesperadamente. Essas coisas não têm hora para acontecer. Estávamos em aula quando começou um intenso tiroteio do lado de fora.

Quando isso acontece, as crianças começam a entrar em pânico –pensam nas mães, nos pais, nos amigos que estão lá fora, ficam nervosas, choram. Aí eu faço isso: tiro elas da sala de aula, para ficarmos mais protegidos, e levo-as ao corredor, boto elas sentadinhas no chão e falo: 'Vamos cantar!'. E cantamos para nos distrair.

Naquele dia cantamos uma música minha, 'Criança Esperança', que os alunos conhecem e gostam muito. Aqui na escola tem muitos com deficiência auditiva, então a gente ensina as letras em linguagem de libras. No vídeo você pode ver as crianças gesticulando. Elas adoram.

O refrão é assim: 'Para brotar do meu peito / Dentro do meu coração / muita alegria, mil fantasias, paz e mais compreensão / Música, brindes e cores / Sonhos de um mundo melhor / Força criança, criança esperança / Fé que levanta o astral".

Nesse dia, o tiroteio durou uns 20 minutos. Quanto mais próximo e mais alto o barulho ficava, com mais força eu tocava e mais pedia para as crianças cantarem.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu, aliás, é bem comum. Tem fases melhores e fases piores.

A minha experiência formal é no magistério, fui seminarista, sou músico, pedagogo, mas a maior escola de vida que tive foi dar aula durante nove anos em uma favela perto daqui chamada Antares.

Lá ganhei essa experiência com sustos, com usar a música para lidar com situações de violência. Aquilo lá era muito mais violento do que aqui. Em frente à escola tinha um quartel general do tráfico. Tinha tiroteio o tempo todo, e as crianças choravam pelo tio, pai, irmão, que eles sabiam que poderiam estar mortos.

Quando cheguei lá pela primeira vez, gelei. Era uma escola feia, mal pintada, cheia de marca de tiro. Na porta, um cara sem camisa, de chinelo e com um porrete na mão cuidava das crianças.

Eu estava acostumado com uma escola católica de Petrópolis [no interior do Estado]. Mas sou guiado pela fé, sabia que papai do céu tinha um plano para mim. Daquela escola saiu uma orquestra de flautas. Ganhamos o primeiro lugar no Festival da Canção das Escolas Municipais. As crianças tocavam de tudo com flautas doces de R$ 1,99. Um dos meus alunos de lá está fazendo escola de maestro.

Eu sempre soube que Deus tinha um plano para mim. Aos poucos, com essas coisas que acontecem, vou vendo qual era. Eu cresci em Xerém [distrito de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense]. Até a oitava série estudei em uma ótima escola pública, a Escola Estadual Barão de Mauá.

O que me fez despertar para a música foi minha mãe, que cantava muito, e as histórias que ela contava do meu avô, que ficava na calçada tocando sanfona, gaita.

Naquela época, violão era uma coisa caríssima. Meu pai não podia me dar. Eu conquistei meu primeiro violão quando ganhei um concurso no seminário onde estudava, em Agudos, em São Paulo. Décadas depois, preparei uma menina de seis anos para um concurso de canto. Ela venceu e ganhou seu primeiro violão. Veja como as coisas são.

Depois do seminário, me mudei para Petrópolis, fiz o conservatório de música e, depois, me formei em pedagogia e música na Universidade Católica. Cantava no coral.

Mas a grande história da minha vida começou quando fiz o concurso da prefeitura e fui dar aula em Antares.

O futuro eu não sei como será. Desde que esse vídeo veio a público, tenho dado entrevista após entrevista. Meu sonho é que minha música "Criança Esperança" possa ser a canção-tema do projeto que leva o nome. Isso é o que eu vejo, mas pode ser que aconteça muito mais. Um taxista me disse: 'Você é um multiplicador'. Eu gostei. Acho que sou, mesmo.


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