Folha de S. Paulo


Colônia para portadores de hanseníase hoje é cidade fantasma no Sul do país

Ana Mendes/Divulgação
A 50 km de Porto Alegre, Colônia Itapuã já abrigou 1.454 doentes
A 50 km de Porto Alegre, Colônia Itapuã já abrigou 1.454 doentes

A 50 km de Porto Alegre (RS), cercada por mais de mil hectares de mata virgem, existe uma cidade fantasma.

Construída durante o Estado Novo como parte de uma política de confinamento compulsório dos portadores de Mal de Hansen, a Colônia Itapuã foi inaugurada em 1940 e abrigou 1.454 doentes.

Identificados como portadores da doença –também conhecida como hanseníase ou lepra–, crianças, jovens ou adultos eram separados de suas famílias e forçados ao isolamento pelo Estado, numa medida que passou a ser questionada nos anos 50 e 60, quando tratamentos alternativos ao confinamento passaram a existir.

Hoje, a Colônia Itapuã ainda é morada de oito ex-pacientes que perderam o vínculo com o mundo exterior e permaneceram nesta cidade mesmo quando tiveram autorização para sair, em 1986.

Para ser autossuficiente, a Colônia Itapuã tinha restaurante, hospital, escola, igreja, cadeia e até moeda própria, criada para evitar o intercâmbio de cédulas com o mundo exterior, consideradas potenciais agentes contaminantes.

"A arquitetura do isolamento dessas colônias, que eram 37 no Brasil, é, em boa parte, padronizada. E sua concepção é similar à dos campos de concentração, com sistemas de segregação", explica Artur Custódio, do Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas por Hanseníase).

Francisco Ribeiro/Divulgação
Eva Nunes, 72, um dos 8 moradores remanescentes da colônia
Eva Nunes, 72, um dos 8 moradores remanescentes da colônia

É essa arquitetura e suas implicações na vida de milhares de brasileiros que, a partir desta segunda (17), poderá ser visitada virtualmente no projeto transmídia Cidade Inventada (acidadeinventada.com.br ), selecionado pelo Rumos Itaú Cultural.

O site reúne documentos, fotos e vídeos gravados no local, que permitem uma visita a prédios, alamedas e moradores remanescentes.

"O local era administrado por uma ordem de freiras franciscanas, que impunha um controle moral. Homens eram separados de mulheres e, para se relacionarem, precisavam pedir autorização", conta a documentarista Liliana Sulzback, autora do filme que deu origem ao projeto digital.

"Precisava preservar a história dessas pessoas porque a cidade está desaparecendo."

Eva Nunes que o diga. Aos 72 anos, ela é um dos oito moradores remanescentes. Chegou à Colônia Itapuã com apenas 12 anos, em 1959. "Fiquei muito desesperada quando cheguei aqui e tentei fugir, mas fui pega. Por pouco não me colocaram na cadeia por causa disso", lembra.

Ela diz que, passado o impacto inicial, se acostumou à vida na colônia. "Era um lugar maravilhoso. Me criei, me casei, tudo bonitinho. Mas, hoje, está totalmente abandonado. Me sinto esquecida."

Onde fica - Hospital Colônia Itapuã

INDENIZAÇÃO

Em 2007, o Brasil se tornou o segundo país do mundo a indenizar pessoas que foram isoladas compulsoriamente por causa da hanseníase.

"Recebi 27 pilas do governo", conta Eva. "Comprei um terreno e construí uma casinha pra mim na Vila Itapuã [cidade vizinha]. Hoje, recebo um salário mínimo por mês."

O primeiro país a indenizar as vítimas do isolamento compulsório pelo Mal de Hansen foi o Japão, que teve 17 colônias em funcionamento até os anos 1990, e onde homens eram esterilizados e mulheres que eventualmente engravidassem tinham de abortar os bebês.

No Brasil, agora são os filhos de pacientes isolados pelo Estado que buscam reparação. Isso porque eles eram imediatamente separados dos pais, que muitas vezes nunca mais viam.

A professora aposentada Marleci Petry Starosky, 61, foi um dos bebês nascidos em Itapuã e retirados do local logo após o parto. "Minha mãe só soube que eu era menina uma semana depois", conta.

Marleci, assim como todas as outras crianças nascidas ali, foi para um "Preventório", espécie de orfanato voltado aos filhos dos pacientes da colônias, onde viveu nove anos

"Vi meu pai quatro vezes na vida. Ele era muito doente. A gente ia até a colônia, mas ficava do lado de fora no portão. As freiras então apontavam quem eram nossos pais pra gente abanar as mãos pra eles", lembra.

Aos 12 anos, Marleci foi levada, pelo mato, para dentro da colônia, onde passou a viver com a mãe e chegou a ser "rainha do time de futebol" de pacientes. "Era um convívio complicado. Eu era a única criança lá dentro na época, e as pessoas não tinham esperança de nada. Recebia propostas de casamento todos os dias. E tinha um monte de velho caindo aos pedaços, babando em cima de mim. Cruz credo."

Marleci faz parte do grupo de filhos de pais isolados que pleiteia indenização. "Acho justo. Imagine como fui criada? Meus pais eram estranhos na minha vida. Viver nos internatos era muito difícil. Isso sem dizer que, quando descobriam que meus pais eram leprosos, todos se afastavam de mim."

INDICADOR SOCIAL

A política de confinamento compulsório de doentes de Mal de Hansen foi mundial. Países como a Índia chegaram a ter 800 colônias de isolamento. Provocada por um bacilo e transmitida pela respiração, como a tuberculosa, a hanseníase é uma doença usada como indicador social, pois se desenvolve apenas em indivíduos com baixa resistência e desnutridos.

O Brasil é campeão mundial em prevalência de hanseníase e tem cerca de 26 mil novos casos por ano, muitos deles em crianças.

"Isso aponta que há adultos sem tratamento por perto. Temos taxas muito ruins de exames domiciliares, por isso, detectamos tardiamente a doença", explica Custódio.

Para ele, projetos como o da Cidade Invertida são importantes para dar visibilidade a uma doença negligenciada e para preservar a memória de uma política higienista que se repete ao longo da história da humanidade.

"A preservação da memória nunca foi forte no Brasil. Quando se trata de uma questão que envolve crime de direitos humanos, como o confinamento compulsório, essa preservação é ainda pior", diz.

O Morhan mantém um telefone para informações e denúncias relativas à hanseníase, disponível de segunda a sexta, das 9h às 17h: 0800-026-2001.


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