Folha de S. Paulo


Surdo e cego, homem aprende a 'falar' pelo tato e sonha em cursar faculdade

Todas as manhãs, o artesão André Luiz Siqueira, 38, prepara o café da manhã para a família em Ribeirão Preto (a 313 km de São Paulo). Senta-se à mesa com a mulher, Adriana Moreira Siqueira, 43, e as filhas, Maria Fernanda, 8, e Maria Gabriela, 2.

A conversa entre eles, no entanto, é diferente. Como André não ouve, não vê e não fala, ele se comunica pelo tato, ao "ler" os sinais de libras tocando as mãos da mulher.

Diagnosticado com Síndrome de Usher -doença hereditária caracterizada pela deficiência auditiva e perda progressiva da visão-, o artesão perdeu a audição ainda bebê.

A visão foi comprometida na adolescência, até que, aos 22 anos, ele ficou totalmente cego. "Lembro o dia em que perdi a visão. Fui até o banheiro e percebi minha mãe à porta. Vi somente o vulto dela e comecei a chorar. Aí escureceu tudo", conta à reportagem por meio de libras, traduzidas pela mulher, sua constante intérprete.

INFÂNCIA

Na infância, sem ter sido apresentado ao braile para poder ler e escrever, ele recorria à leitura labial e a poucos gestos de libras que aprendeu na escola para se expressar.

Sem muito estímulo em sala de aula e em casa, falava pouco. Tentou tratamento com fonoaudiólogos para se inserir, mas não houve evolução. André praticamente só consegue emitir ruídos.

Quando veio a cegueira, entrou em depressão. Na casa em que morava com os pais, na zona rural de Ribeirão Preto, o contato se resumia a membros da família e alguns amigos.

Com o passar do tempo, André foi aprendendo, sozinho, a tatear mãos para saber o que falavam com ele.

"Tive que me adaptar. As pessoas ao meu redor começaram a conseguir traduzir para mim, com as mãos, o que elas queriam dizer. Entendi que dava para levar uma vida normal", afirma.

Foi graças à mulher que a leitura pelo tato de libras evoluiu a ponto de ele compreender todas as palavras.

APOIO

Em 2006, aos 26 anos, André entrou em um centro de educação especial voltado ao mercado de trabalho.

Lá, tornou-se fluente em libras e aprendeu a lavar carros em uma das oficinas.

Naquele mesmo ano, conheceu Adriana. Ela, que participava de um projeto social de comunicação em libras, visitava o centro para conhecer os alunos. Apaixonou-se por André, "quase que imediatamente".
"Vê-lo, surdocego, com aquela força de vontade em aprender as coisas, tocou demais meu coração. Senti um amor inexplicável", conta.

Atenta ao desenvolvimento do marido, ela o matriculou na associação de cegos do município para aprender braile.

SONHOS

Adriana, que já fez cursos de panificação, artesanato e jardinagem, ingressou na faculdade de letras. Este ano, começou uma pós-graduação em libras. "Sou grato à Adriana, porque ela é meus olhos, interpreta o mundo para mim. Não tenho tristeza dentro de mim", diz o marido.

André, que frequentava as aulas na graduação com a mulher, agora sonha também em cursar letras ou pedagogia. "Eu a acompanhava, ficava às vezes lendo algum livro em braile. Conseguia entender muitas coisas das aulas porque ela traduzia para mim."

Além de ser artesão, ele diz saber cozinhar, fazer instalações elétricas e jardinagem. Espera ficar fluente em braile -só é alfabetizado em libras- para ter condições de ingressar em uma faculdade.

No futuro, pretende desenvolver um projeto para surdocegos como ele -não há estatística oficial que mensure essa população no país. "Gostaria de ensinar as famílias que convivem com eles. Desejo muito, um dia, ser professor."


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