Folha de S. Paulo


Decapitação e violência em série amedrontam moradores de Paraty

No momento em que blocos de Carnaval passavam pelo chão de pedras no centro histórico de Paraty, um homem era decapitado na frente de moradores em um bairro pobre da cidade turística.

O município que abriga a Flip —maior festa literária do país— tem vivido sérios problemas de violência: alto índice de assassinatos, disputa pelo tráfico, onda de furtos e uma greve da Polícia Civil que já dura quase dois meses.

No último dia 27, segunda-feira de Carnaval, o município do litoral sul fluminense registrou um crime bárbaro que até hoje choca os moradores.

Diz o Ministério Público que William de Azevedo, 30, morador da favela Ilha das Cobras –a 1 km do centro– foi acusado de ter beijado a namorada de um chefe do tráfico local. Este criminoso, que está preso, teria mandado matar o rapaz por vingança.

William teve a cabeça cortada e queimada. Seu corpo foi jogado em um rio.

A suposta namorada do traficante foi espancada na rua e teve o cabelo raspado.

As fotos dela e do corpo de William circularam entre moradores de Paraty, tida como tranquila. Para Vinicius Ribeiro, promotor da cidade há três anos, este grau de crueldade é fato inédito no município de 40 mil moradores.

Paraty acuada

Segundo o Mapa da Violência, com dados de 2012 a 2014, a cidade tem o pior índice de assassinatos do Estado do Rio —média de 60,9 mortes para cada 100 mil habitantes. A média nacional é de 29,1.

Um dia depois da decapitação, um homem de 48 anos foi morto no bairro da Serraria. "Meu primo estava na casa de um amigo, e os dois começaram a discutir. Meu primo foi espancado até a morte com uma cavadeira. Em Paraty está assim: se você pisa no pé de alguém, a pessoa pode te matar", conta a comerciante Maria, 40 (nome fictício).

Ela esperou dois dias para enterrar o primo. "O fórum estava fechado por causa do Carnaval, não tinha ninguém para liberar os documentos."

O avanço da insegurança vem de meses na cidade turística. Em 30 de dezembro de 2015, a skatista Giselle Alves, 33, foi estuprada e morta em uma rua do centro histórico –local que recebe milhares de turistas. Até hoje o crime não foi solucionado.

TRÁFICO DE DROGAS

Policiais e o Ministério Público atribuem a maioria dos assassinatos à disputa entre traficantes. As favelas vizinhas Ilha das Cobras e Mangueira são controladas por facções rivais, Comando Vermelho e Terceiro Comando.

"Eu diria que 90% das mortes aqui são por conta dessa guerra. Paraty não é diferente do que ocorre no Estado do Rio de Janeiro", diz o promotor Vinicius Ribeiro.

Outro fator que tem assustado moradores é uma recente onda de furtos e roubos a casas e ao comércio.

Diego Padgurschi/Folhapress
Ruas do centro histórico de Paraty tem pouco policiamento durante período da noite
Ruas do centro histórico de Paraty tem pouco policiamento durante período da noite

ROUBOS E SEGURANÇA

Dessa vez, Ieve Alves, 33, acha que se preparou bem: tem um porrete atrás porta, cerca eletrificada no telhado, um facão embaixo do armário. É assim que o comerciante de Paraty espera combater um possível e novo ladrão.

Na semana do Carnaval, sua chapelaria na rua da Lapa, uma das principais vielas do centro histórico da cidade fluminense, foi furtada à noite. "Levaram 60 cangas, 40 camisas, meu violão de estimação, meu ukulele, mochilas, chapéus. Uns R$ 10 mil em mercadoria", contou.

Agora, Ieve tenta se defender sozinho: eletrificou um arame que passa em cima da loja e escondeu armas. "Mais da metade das lojas no centro já foi furtada. Toda semana agora tem um caso".

Além do alto índice de assassinatos, Paraty tem vivido uma onda de furtos e roubos que se intensificou há dois meses, segundo comerciantes, que costumam pagar mensalidade para empresas de segurança particular.

Nas lojas do centro —que tem dezenas de pousadas e recebe milhares de turistas— os furtos normalmente ocorrem durante a madrugada.

Em três noites da semana passada, os bares estavam lotados de turistas, mas a reportagem não viu policiais militares rondando as ruas de pedra do centro histórico —essa é uma reclamação constante na cidade. Questionada, a PM do Rio diz que faz rondas a pé e em carros.

Nas casas, os crimes podem acontecer a qualquer hora. Por volta das 6h, bateram na porta de Ismael de Araújo, 52, dono de um pequeno bistrô no pé da Rio-Santos, rodovia que corta Paraty.

Dois homens armados renderam a família e levaram celulares e dinheiro. "Os bens materiais não importam. O que eles roubaram foi minha paz", disse Ismael. Sua casa, na mata, não tem nem portão.
Outras três casas próximas foram invadidas naquele dia.

Promotor em Paraty, Vinicius Ribeiro argumentou que crimes patrimoniais não são o principal problema. "São episódicos, não há aumento de roubos. Mas sabemos que a sensação de insegurança é subjetiva", disse.

A Prefeitura de Paraty diz que criou um sistema de monitoramento e prevenção da violência com o Instituto Igarapé. Também diz ser necessário "um reforço no contingente e na estrutura das polícias Civil e Militar" na cidade.

O delegado do município, que pediu para não divulgar seu nome, disse que os moradores não fazem boletins de ocorrência. "Só posso investigar se tiver aqui o papel".

'ISSO NÃO É NADA'

Comunicar crimes na delegacia de Paraty, no entanto, é tarefa ingrata. Os policiais civis do Rio de Janeiro estão em greve desde 30 de janeiro. A categoria pede aumento salarial e o pagamento do 13º salário do ano passado.

Na tarde de terça (7), o comerciante Raí Araújo, 22, entrou na delegacia de Paraty. Estava descalço e com a mão coberta por um pano. Um policial civil perguntou o que ocorreu. Raí contou:

"Hospedei um argentino. Nesse domingo, cheguei no meu hostel, e discutimos. Ele pegou uma faca, parecia drogado. Tentou me matar na frente do meu filho, me defendi, mas ele esfaqueou minha mão. Tomei a faca dele e esfaqueei ele também."

Na frente da reportagem da Folha, um policial se recusou a fazer um boletim de ocorrência do caso: "Isso não é nada. Aqui a gente não registra, estamos em greve. Você vai ter que ir a Angra [dos Reis, a 90 km]. Vai precisar de advogado, ir no IML, se eu fosse você, esquecia isso. Um papel não vai salvar sua vida".

Raí foi embora, e está com medo do retorno de seu algoz. "Para que existe a polícia? Se eu morrer, se minha família morrer, de quem será a culpa?", perguntou.

Apesar da greve, o delegado de Paraty afirmou que investigações sobre crimes graves continuam, como o inquérito do assassinato de William de Azevedo, 33, que teve a cabeça cortada na frente de moradores de uma favela durante o Carnaval.

"Você quer saber da cabeça, não é? Sobre a cabeça, só posso te dizer o seguinte: abrimos um inquérito policial e estamos investigando".

Questionada na sexta (10), a Polícia Civil do Rio de Janeiro não se pronunciou sobre nenhuma informação relatada nesta reportagem.

'INCONVENIENTE'

Na manhã de quarta (8), a bióloga Manoela Brazil, 35, enfrentava uma fila para comunicar ao único defensor público de Paraty que ela estava fugindo da cidade com o filho de dois anos. Está com medo de ser assassinada.

Manoela foi ameaçada de morte pelo ex-marido 20 dias antes, contou. "Fui à delegacia, os policiais pediram para eu fazer boletim pela internet, porque estão em greve".

Ela relatou que quando voltou ao local, os agentes se recusaram a continuar as investigações e a pedir à Justiça uma medida protetiva —documento que proibiria seu ex-marido de se aproximar.

"Os policiais deixaram claro que eu estava sendo inconveniente de procurar a polícia, que eu estava usando a Polícia Civil para me separar. Fui ameaçada de morte e 20 dias depois não aconteceu nada", disse ela.


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