Folha de S. Paulo


Morto em frente a Habib's, garoto empinava pipa e usava lança-perfume

Quando perdeu o dente em uma briga no ano passado, João Victor chorou durante uma hora. Depois, voltou à praça onde tinha acontecido a briga e abraçou o moleque que havia quebrado seu dente.

Baixinho, magro e dentuço, João Victor Souza de Carvalho, 13, era conhecido no bairro, a Brasilândia (zona norte), como Dentinho. Filho de pai catador de lixo e de mãe que lava ônibus, passava os dias empinando pipa, andando de skate ou de bicicleta que pegava emprestados e pedindo dinheiro no semáforo. Desde o ano passado, não frequentava a escola. Às vezes ajudava o pai a catar sucata e, segundo amigos, usava lança-perfume.

João Victor morreu no domingo (26) após uma confusão na lanchonete Habib's da Vila Nova Cachoeirinha. Imagens mostram duas pessoas, que a polícia suspeita serem o supervisor Guilherme Francisco do Santos, 20, e o gerente do local, Alexandre José da Silva, 32, arrastando o menino pelo asfalto até jogá-lo na rua desacordado.

Duas testemunhas afirmam que viram João Victor ser espancado. Uma delas denunciou ter sido ameaçada depois de ter prestado depoimento relatando o espancamento. Ele estaria pedindo dinheiro e esfirra a clientes.

Laudo do Instituto Médico Legal aponta que houve morte súbita, de origem cardíaca, relacionada ao uso de entorpecentes. Havia traços de cocaína e de substâncias do lança-perfume em seu corpo.

'DOIS PEIXINHOS'

João Victor vivia com o pai e a irmã Talita, 17, na parte de cima de um sobrado, a 800 metros do Habib's –fechado até hoje por pressão da família e da vizinhança do local.

De manhã, gostava de assistir a desenhos, lembra Talita, grávida de nove meses. A sobrinha que nunca vai conhecer e o novo irmão ou irmã –a mãe de João Victor também está grávida, de cinco meses– eram como "dois peixinhos", dizia ele, apontando para a barriga das duas. Tinha um sonho: que os pais, separados, morassem em casas mais próximas.

Sentada na cozinha da casa da prima, sua mãe, Fernanda Cássia de Souza, 34, diz: "Já deu para perceber que somos pobres, né?". O aluguel da casa onde vive com as outras duas filhas é de R$ 450.

Ela lembra com emoção de quando João Victor ia visitá-la na garagem onde ela lava ônibus. "A alegria dele ninguém traz mais. Tiraram os sonhos do meu filho", diz, chorando. "Se ele já tinha ido embora, por que correram atrás dele?", questiona. "Arrastaram meu filho como se fosse lixo -lixo, não, porque saco de lixo a gente toma cuidado para não rasgar."

Por causa do uso de lança-perfume, João Victor fazia tratamento em um Caps (Centro de Atenção Psicossocial) da região. Gostava de cantar funk e de usar roupas largas, conta a mãe. Com os amigos, frequentava os bailes de funk do bairro. E, diz o amigo Davi Gomes, 15, era muito bom no "passinho do Romano", coreografia em que braços e pernas se cruzam rapidamente ao som de funk. "Ele era tranquilo, era nosso parceiro", afirma. E diz que o amigo ficava até tarde na rua.

Era frequentador assíduo do "pastão", praça do bairro com pista de skate, campinho de futebol e quadra de basquete. Ali, brincava de pega-pega ou de colocar garrafas entre os pneus da bicicleta, causando um ruído semelhante ao de motos.

Na tarde desta terça (7), adolescentes lembravam de quando ele ficava ali. "Trocava ideias, me disse que queria ser astronauta quando crescesse", lembra Rafaela Gomes, 18. "Era uma criança sozinha, sem estrutura familiar."

O rapper Rafael Eduardo, o DuRap, 32, diz que o menino, "hiperativo", arriscava umas rimas, mas mais ligadas ao funk –chegou a gravar vídeos no celular da mãe, onde há fotos suas na piscina da casa da tia, celebrando o aniversário, usando um gorro de pelúcia da irmã. "A gente estava tentando fazer o moleque tomar um rumo. Foi mais uma vida tirada nesse palco de guerra que é a Brasilândia", lamenta.

O advogado da família, Francisco Carlos da Silva, diz que vai questionar o laudo. "A questão é: mesmo com substâncias em seu organismo, o menino teria morrido se os agentes não tivessem o agredido?". Para o patologista Paulo Saldiva, as drogas consumidas são estressantes e podem deixar o coração vulnerável. Diante de outra situação de estresse, podem levar à morte súbita.

O Habib's divulgou comunicado reproduzindo o laudo e ressaltando que o adolescente foi "resgatado com vida" e sem sinais de agressão. "A empresa esclarece que os funcionários envolvidos continuarão afastados e que, após apurações finais, tomará medidas cabíveis e emitirá um novo comunicado."

A família fará uma homenagem a João Victor às 19h desta quinta (9) no largo da Matriz, na Freguesia do Ó, e um protesto no dia 16 de março na catedral da Sé.


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