Folha de S. Paulo


Samba está mais fraco e Carnaval virou esquemão, diz Beth Carvalho

Diego Padgurschi/Folhapress
RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL 17-02-2017: Beth Carvalho em seu apartamento em Sao Conrado, no Rio de Janeiro. (Diego Padgurschi /Folhapress - COTIDIANO)
A sambista Beth Carvalho em seu apartamento em São Conrado, no Rio de Janeiro.

Beth Carvalho, 70, a "madrinha do samba", é conhecida por resgatar ou revelar músicos e compositores, de Nelson Cavaquinho e Cartola a Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz. Mas desde Zeca, cujo sucesso despontou ainda na década de 1980, ela não vê surgir um grande nome.

"Hoje o samba está mais fraco", disse à Folha. Os motivos, avalia Beth, passam pela falta de acesso às rádios, o desinteresse da imprensa, a derrocada das gravadoras e à influência americana. "A forma de cantar o que é chamado de samba mudou. Esse tal pagode que está aí é outra música, que usa ritmo do samba, mas não é samba."

Beth recebeu a reportagem em uma cadeira de rodas porque se recupera de um grave problema na coluna. "Faço tudo no meu 'Bethmóvel'", diz, em referência a um tipo de moto que usa em público.

Neste ano, ela foi homenageada como enredo da Alegria da Zona Sul, escola do Grupo de Acesso (espécie de segunda divisão) do Rio. Para Beth, as grandes escolas "estão reféns do patrocínio" e "começaram a delirar" –diferentemente do Carnaval de rua, com "garotada" e "contexto político", "contrário a todo esse esquemão que se tornou o Carnaval".

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Folha - Com o Cacique de Ramos, nos anos 1970, você mudou o formato do samba, incluindo nele instrumentos populares, e revelou Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Sombrinha, Arlindo e por aí vai. Como vê a nova geração?
Beth Carvalho - Hoje o samba está mais fraco. Continua sendo aquela turma do Cacique de Ramos os grandes compositores: Zeca etc. São eles que têm prestígio.
A forma de cantar o que é chamado de samba –que eu nem considero samba– mudou. Esse tal pagode que está aí é outra música, que usa ritmo do samba, mas não é samba. Samba tem filosofia, poesia, forma de cantar direta. Não tem esses floreios, essa coisa americanizada. Samba é papo reto. E esse papo reto eu não tenho visto mais.
Zeca, o maior sambista do país, é "Pagodinho". A gente é do pagode. Mas não posso mais falar que canto pagode, dizem que eu canto samba de raiz. Pagode foi apropriado por essa outra coisa.

Qual o suspiro mais recente?
O último que eu revelei foi Zeca. Depois disso, não lembro. Foi aí que começou essa história. Com música sertaneja não aconteceu isso?
Sertanejo não é mais sertanejo, forró não é mais forró, samba não é mais samba.

Há exceções?
Moyséis Marques, Wanderley Monteiro, Claudinho Guimarães, Serginho Meriti são grandes compositores.
A música que cantei contra o golpe ["Não vai ter golpe de novo / Reage, reage, meu povo!"] é do Claudinho. Além de bom, é engajado.

E o samba-enredo, como vai?
Nunca mais ninguém vai fazer um samba como "Mangueira, teu cenário é uma beleza / Que a natureza criou, ô ô" [samba de exaltação à Mangueira, de Aloísio Costa e Eneas Brites da Silva, e que todo ano serve de "esquenta" para a escola entrar na avenida]. Quem fez era apaixonado pela escola, conhecia a escola.
Agora não tem mais compositores, mas escritórios. Juntam um bando de compositores, de tudo quanto é lugar, e eles fazem por encomenda para todos -até para São Paulo. Imagina seis ou sete pessoas fazendo um samba sem a menor alma, sem menor amor pela escola que ele nunca viveu? As escolas acabaram com a ala de compositor. O que é uma escola sem isso?

Acha que as escolas vivem uma crise criativa?
Sim, já há muito tempo. Estão reféns do patrocínio. A crise financeira de agora pode trazer de volta a criatividade. As escolas não precisam de patrocínio. Com o que ganham, não precisam. O problema é que a coisa ficou megalomaníaca e as escolas começaram a delirar. Fazer enredo sobre iogurte [Porto da Pedra, 2012] não tem nada a ver com escola de samba, é deboche. E como fica a inspiração do compositor?

O Carnaval está no fim?
Não está no fim, mas está difícil. Ficou um Carnaval para a elite da elite. O povo está brincando na rua.

Você gosta de Carnaval da rua. Já cantou em blocos como Simpatia É Quase Amor. Como vê a explosão desse tipo de Carnaval em São Paulo?
Acho boa essa movimentação. A Paulista é feita para isso. Agora, que não vire este sambódromo. Essa coisa de ir para a avenida e nem assistir às escolas. Nos camarotes, toca tudo menos samba. Carnaval de rua já é um protesto. É juventude, é garotada. E com contexto político, contrário a todo esse esquemão que se tornou o Carnaval.

Blocos estão evitando cantar canções de teor preconceituoso. O que acha?
Acho legal banir, não repetir o erro. Nunca tinha percebido que "O Teu Cabelo Não Nega" é racista. Martinho me chamou a atenção para isso. Eu já havia gravado quando entendi. Hoje, não teria gravado. Se Lamartine Babo errou, por que errar de novo?

Mulher apanha muito no samba. Essas letras te incomodam?
Muito. Não canto essas coisas de "você me deixou, fiquei mal, mas te amo mesmo assim".

O samba é machista?
O Brasil todo é. Samba até que é menos porque é muito matriarcal. Por exemplo, se as pastoras não gostam do samba, não cantam. É uma forma de exercer autoridade. Eu combati muito o machismo. Falei muito no Cacique que não pode bater em mulher.

O papel da mulher no samba mudou ao longo dos seus 50 anos de carreira?
Falta mulher. Mas a partir da Clara [Nunes], de mim mesma, da Alcione, a mulher tomou um lugar bem forte.

O Clube do Samba foi criado como forma de resistência do gênero. Quais são os obstáculos hoje?
Rádio não toca samba. Há poucas matérias de jornal. Não há mais disco. Quando havia gravadora, elas trabalhavam o disco.
Tinha toda uma infraestrutura, que é melhor do que um artista sozinho -estúdio, assessoria de imprensa. Agora é "se vira". Isso pode ter a ver. Quem tem estrutura toca.

Você já disse achar que a CIA quer acabar com o samba. Ainda pensa assim?
Sim, os Estados Unidos têm tudo a ver com isso. Não admitem que alguém seja mais que eles. Nós somos mais que eles na música. Já foi o tempo da música boa americana - Sinatra, Fitzgerald, Sarah Vaughan. O nível deles piorou mais cedo. Sempre teve influência da música americana, mas, quando ela era boa, tudo bem. Agora está péssima.
Mas não é só isso, existe uma questão política nos Estados Unidos de dominar o mundo. A forma mais imediata de dominar um povo é acabar com a cultura dele. As pessoas riem de mim, mas é porque não sabem a história.

Você sempre foi engajada, e recentemente participou da reação de parte da classe artística contra o impeachment de Dilma Rousseff. Qual é o papel do artista no momento atual?
Gostaria que houvesse uma grande manifestação.

Tem visto isso acontecer?
Não tanto quanto gostaria.

A que atribui isso?
Ao medo. As pessoas não falam porque têm medo de retaliação, da imprensa, que é toda de direita. Estamos vivendo uma ditadura civil.

Como estão os planos para o futuro? O que mais quer fazer?
Vou fazer show pelo Brasil a partir de março. Quero continuar a fazer meus discos. Já tenho um projeto, ainda para 2017. Minha biografia está sendo escrita. Tenho o sonho de ter um instituto, com o meu acervo e de outros sambistas, um teatro e uma escola para pessoas pobres aprenderem a tocar samba.

Qual acha que vai ser seu papel na história do gênero?
Deixo isso para vocês. E sei do meu papel de descobrir pessoas, de ser muito elogiada pelo meu repertório. As pessoas falam, e a gente acaba acreditando.

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RAIO-X

Nome completo Elizabeth Santos Leal de Carvalho

Idade 70 anos (71 em maio)

Carreira 50 anos de carreira, 33 discos e 4 DVDs e 6 Prêmios Sharp, 17 Discos de Ouro, 9 de Platina, 2 DVDs de Platina

Influência Ajudou a revelar artistas como Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Sombra, Sombrinha, Arlindo Cruz, Luis Carlos da Vila, Jorge Aragão; ajudou a resgatar obra de Cartola e Nelson Cavaquinho

Destaques Gravou "Coisinha do Pai", "Vou Festejar", "Folhas Secas", "As Rosas Não Falam"


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