Folha de S. Paulo


Velha Guarda Paulistana

Maria Helena Tom faz do samba sua busca por liberdade

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Maria Helena sempre soube: seu pai, Seu Orlando nunca gostou de Carnaval. Dona Albertina, sua mãe, vestia as três filhas com fantasias para a festa, mas Seu Orlando torcia o nariz.

Às vésperas do Carnaval, a escola de samba da Vila Madalena, a Coração de Bronze, passava em frente à casa da família e seu Orlando aproveitava para proibir as filhas de participarem da folia.

Pela manhã, enquanto o pai trabalhava, Maria Helena, a mais velha das filhas, via a movimentação da escola de samba. Via os componentes, em sua maioria negros, pedirem dinheiro aos donos de comércio do bairro, em sua maioria portugueses. "Havia um certo confronto. Quando a escola saía para pedir donativos, os donos das padarias, dos restaurantes fechavam as portas", relembra Maria Helena. E quando seu Orlando chegava do trabalho na rádio Tupi, Maria Helena já estava de volta em casa, fingindo ignorar a batucada que ouvia na rua.

Diante da rigidez do pai, o samba era apenas um sonho para Maria Helena. "Mas chega sempre o dia em que a gente se liberta", conta. Quando criança, Maria ainda não sabia, mas encontraria no samba o seu aliado na busca por sua identidade e liberdade.

A construção da liberdade de Maria Helena começou por vias tortas, porém. Aos 14, ela perdeu a mãe, dona Albertina. Seu Orlando levou as três filhas para morar com uma tia, no distante bairro do Jabaquara, na zona sul de São Paulo. Nem Maria nem suas irmãs se adaptaram à mudança e as crianças fugiram de casa.

Ainda adolescente, Maria arranjou um namorado e foi morar num cortiço da Bela-Vista, berço do tradicional Vai-Vai. Foi ali que teve o primeiro filho, Sidnei. Após anos de namoro, de ciúmes e brigas, se separou do namorado, que costumava sair à noite sozinho e voltava apenas de manhã com a roupa amarrotada.

Mais uma vez, Maria saiu de casa. Se mudou para a Barra-funda, na zona oeste, casa de outra tradicional escola de samba de São Paulo, a Camisa Verde e Branco. Sem a vigília do pai, Maria Helena foi logo se engraçar por Helio, o mais malandro do bairro. Para se ter ideia, Helio é conhecido até hoje entre os sambistas paulistas como Helio Bagunça. O apelido não é injusto, dizem os sambistas.

"Ainda hoje quando vou na Bela Vista, brinco com o caras de lá que eles se dizem tão malandros, mas foi um malandro da Barra Funda que me raptou". Maria Helena conta a história se referindo aos bairros que tinham a maior das rivalidades do samba de São Paulo.

Helio fez de Maria Helena o destaque nos desfiles do Camisa Verde e Branco. Para quem nem sequer podia ver a escola de samba do bairro enquanto criança, desfilar na avenida São João era uma vida completamente nova. Os dois foram morar em uma casa grande na Barra Funda. À noite, o novo lar do casal era frequentado por sambistas de toda a cidade, além de universitários da USP e da PUC. A casa era como um quartel-general do samba. Lá ocorriam, por exemplo, reuniões e ensaios do grupo criado por Helio Bagunça, o Chic Samba Show. No grupo, todos dançavam, tocavam e dançavam. "Como eles tinham a necessidade de vozes femininas, eu acabei entrando no grupo para cantar", conta Maria Helena.

Na casa, Maria Helena amadureceu, aprendeu a construir sua autonomia.

Entre as noites de afeto do casal, Helio cantava um samba de 1969 de Martinho da Vila, chamado "Tom Maior". A letra falava sobre a gestação de um filho que, com esperança, cresceria em um Brasil melhor. "Vai ter que amar a liberdade / Só vai cantar em Tom Maior", Helio cantarolava a letra de Martinho para Maria Helena.

Em uma dessas vezes, Helio desafiou Maria Helena: "Me dá um filho homem que eu te dou uma escola de samba". Intimamente, Helio já desejava fundar uma escola sua e sair do Camisa Verde e Branco.

Maria Helena topou o desafio. "Só que em vez de um filho homem, nasceu a Fernanda. Ainda assim, eu ganhei a escola de samba", brinca ela.

O casal, junto com um grupo de universitários e sambistas do Camisa Verde e Branco, fundou a Tom Maior, escola que neste ano desfila pelo grupo especial do Carnaval paulistano. "Quando digo que a Tom Maior nasceu na cama, acham que é brincadeira, mas é verdade", conta. A partir deste momento, a sambista passa a ser reconhecida como Maria Helena Tom.

Mesmo que sem sede própria até os anos 2000, a escola concentrava seus ensaios entre Pinheiros, Sumaré e a Vila Madalena, este último onde Maria Helena cresceu e aprendeu a gostar do samba.

Depois de alguns anos, a casa cheia de sambistas até a madrugada e a rotina de shows do marido começou a incomodar Maria Helena.

"Por mais que você goste, casamento é sempre uma responsabilidade, um compromisso. E parte desse compromisso, eu assumi cuidando das coisas dele. Ninguém me perguntou se eu queria colocar o lenço na cabeça e preparar a janta dele quando ele chegava em casa. Mas foi assim que aconteceu", lembra Maria. "E eu não nasci para ser dona de casa".

Com os anos, o casal se afastou. Se afastaram também da Tom Maior, contato que Maria Helena só retomou nos últimos anos. Fernanda, a filha de Maria, cresceu e se tornou porta bandeira pelas escolas Flor de Liz, Pérola Negra, X-9 e Águia de Ouro. Seu Orlando morreu desconhecendo a história da filha no samba. "Nós éramos muito oprimidas por sermos mulheres, então o samba para mim sempre foi uma busca. Busca por liberdade", analisa.

Hoje, aos 68 anos de idade, Maria Helena leva uma vida ainda animada no bairro da Vila Madalena, vai ao samba sempre que pode, volta tarde sempre que possível e desfilará na ala da Velha Guarda da Tom Maior, na sexta-feira (24). Maria Helena é embaixatriz do samba, título honorário da União das Escolas de Samba Paulistanas pela sua contribuição ao samba paulista.


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