Folha de S. Paulo


Velha Guarda Paulistana

Como passista, Guinão viu o samba de SP se transformar

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Vagner José de Moraes, conhecido como Guinão, guarda como relíquia os seus sapatos de verniz. Eles são de todas os tipos: brancos, azuis, vermelhos, com fivela na lateral, de bico fino. Para usá-los neste Carnaval, Guinão já começou a limpá-los e lustra-los.

Guinão é há décadas passista do Vai-Vai. Sambando, ele participou da transformação do samba paulista que no final dos anos 60 se afastou de suas origens interioranas e se aproximou da fórmula inventada pela escolas de samba cariocas.

Guinão cresceu em uma família religiosa, que todos os anos viajava de ônibus para as cidades de Pirapora de Bom Jesus, um dos mais fortes redutos do samba rural paulista. Nas festas religiosas da cidade, Guinão assistia atento ao samba de bumbo e à chegada e os duelos dos grupos de congada. Os congadeiros, usando chocalhos presos às pernas davam saltos para o alto, ora erguendo mais um ou outro joelho, ao som do batuque.

"Era mais ou menos assim também que a gente sambava em São Paulo, era um samba saltado. Por isso, a gente usava tênis, não era sapato", conta Guinão.

"Antes, as escolas de samba funcionavam como clubes que promoviam eventos, inclusive viagens", conta o antropólogo e pesquisador do samba rural paulista Marcelo Manzatti. "Em agosto, as escolas viajavam até Pirapora de Bom Jesus, para a festa de Bom Jesus", explica Manzatti.

Cria-se nas escolas de samba de São Paulo, então, um caldo cultural muito alimentado pela influências interioranas. As coisas começam a mudar em 1967, na gestão do carioca Faria Lima à frente da Prefeitura de São Paulo.

Os blocos, cordões carnavalescos e escolas de samba paulistas já faziam seus desfiles nos bairros e promoviam competições entre si, mas costumeiramente eram perseguidos ou reprimidos pela polícia.

Os cordões e escolas de samba então buscaram apoio da Prefeitura. Faria Lima iniciou diálogo com as escolas de samba, mas exigiu que elas se organizassem em associações e que suas disputas por troféus respeitassem um regulamento oficial.

Os cordões, blocos e escolas de São Paulo então recorreram à liga de escolas cariocas que forneceu uma cópia do regulamento de competição do Carnaval no Rio de Janeiro. A partir disso, o modelo carioca é adaptado pelas escolas paulistas em São Paulo.

O primeiro desfile oficial de Carnaval de São Paulo ocorre em 1968, na avenida São João. Naquele Carnaval, Guinão, anos 15 anos, estreou como passista pela Acadêmicos do Ipiranga.

A partir deste ano, o Carnaval de São Paulo passou por um processo de profissionalização e padronização. Segundo especialistas e pesquisadores, o samba paulista se aproximou mais dos padrões cariocas, se afastando de sua origem rural. Tudo mudou: os carros alegóricos, os samba-enredos, a cadência do samba e até o sapato do Guinão.

No Rio, os passistas desfilavam com sapato social e sambavam deslizando o pé. Guinão logo pegou o novo estilo, abandonou o samba saltado e o tênis. "Teve um intercâmbio muito grande com o Rio. Aí, ficou bom para mim", lembra.

Ele se inspirava em Delegado, um lendário passista da Mangueira, e em Fred Astaire, o dançarino americano que assistia pela TV.

Em 1976, já no Vai-Vai, Guinão conquista o prêmio de "Cidadão Samba", conferido pela União das Escolas de Samba Paulistanas ao sambista que melhor soubesse cantar, compor, animar a festa, dançar e tocar instrumentos rítmicos. Ganhador do prêmio, Guinão abriu dois Carnavais do Vai-Vai com a faixa de Cidadão do Samba no peito. Esguio, subia sorrindo a avenida Tiradentes, que a partir de 1977 passou a receber os desfiles oficiais paulistas.

"Eu só tenho certeza de uma coisa: eu sou passista. Isso eu posso falar que eu sou. Brincar de perna... essa é a minha área", orgulha-se Guinão.

Cinquenta anos após a "oficialização do Carnaval" paulista, Guinão vê um novo estilo de passistas surgindo no Carnaval. "Hoje em dia eu vejo o passista completamente diferente do passista da época em que eu comecei. Mas é a evolução dos tempos, não tem como brecar".


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