Folha de S. Paulo


Treino da Força Nacional tem de tiro até simulações de circuito off-road

"Eu vou colocar no 4 por 2 para ter noção de como ele se desenvolve [o motor ronca]. Perceba que o veículo vai se perdendo", diz o instrutor de off-road ao deslizar os pneus em alta velocidade sobre a lama, ameaçando sair da pista.

"Eu coloco 4 por 4 e ele vai melhorar. E a qualquer momento eu coloco no 'drive' e auxilio com a troca de marcha como se fosse um câmbio manual. Eu vou obter uma performance na frenagem..."

O carro dá uma freada e para na hora. O 2º sargento dos bombeiros de Goiás Marcelo Abadia dos Santos ainda entra num buraco com lama, sobe um morro íngreme e percorre cem metros com os dois pneus do lado esquerdo apoiados numa elevação lateral da pista. Parece que vai virar.

No treinamento da Força Nacional de Segurança de Segurança, na Academia Nacional de Polícia, em Brasília, o circuito off-road simula estradas da região Norte, onde policiais do resto do país poderão ter de dirigir caminhonetes S-10 ou Mitsubishi Triton em missões na fronteira.

Desde que acabou a Olimpíada, em agosto, o foco dos treinos migrou dos grandes eventos (manifestações, terrorismo) para questões que o governo elencou como prioritárias: combate ao homicídio, à violência contra a mulher e aos crimes na fronteira (tráfico de drogas e armas).

Há hoje 800 homens de todo o país em treinamento para a Força Nacional. Além da academia cedida pela PF, onde a Folha esteve na terça-feira (31), a corporação dá cursos na Base Gama, na cidade-satélite de mesmo nome.

Dos 800 em treinamento, 500 são PMs e bombeiros inativos do Rio e de São Paulo, a primeira turma de aposentados a fazer a instrução completa, que dura um mês (186 horas de aula) em regime de internato. Foram eles que a reportagem acompanhou.

Às vésperas da Olimpíada, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, criou regra que permite recrutar inativos que tenham deixado a atividade até cinco anos antes.

Até 2016, só policiais militares e civis e bombeiros da ativa entravam, cedidos por seus Estados mediante parcerias com o governo federal.

A seleção dos ativos, pelos Estados, deve seguir critérios como ter experiência na rua e não responder a processos.

Os governos enviam seus homens quando o ministério faz chamamentos, geralmente para temporadas de quatro meses a um ano. A chegada mais recente a Brasília foi na segunda (30), de um grupo de 35 alunos de Rondônia, Roraima, Sergipe e Rio.

Os aposentados, diferentemente, cadastram-se por conta própria e são recrutados por uma equipe da Força que roda o país. Para serem escolhidos, precisam passar em testes físicos e de saúde.

Com a meta de Moraes de aumentar, ainda este ano, de 1.000 para 7.000 os homens em atuação e fazer da Força a principal bandeira do governo Temer na área de segurança, os Estados não dariam conta de ceder policiais sem serem prejudicados no seu dia a dia –daí as mudanças.

Segundo o coordenador do treinamento, major Alkimar Souza, o objetivo do governo é capacitar 6.000 em 2017. Em comparação, nos 12 anos de existência da corporação, 18 mil fizeram o treinamento (em média, 1.500 por ano).

PADRONIZAÇÃO

A academia fica em área de 800 mil m². Do circuito off-road os policiais vão a área de tiros. Quem reprova ali, no final da instrução, é eliminado.

A Força Nacional só usa armas próprias, então, é preciso que todos se familiarizem com os modelos: pistolas Taurus 840 e carabinas IA2 da Imbel. Parte é doada aos Estados após as operações, como contrapartida da União pelos homens emprestados.

Criada em 2004, no governo Lula, a Força Nacional esteve no noticiário no auge da recente crise prisional.

Ela não tem efetivo fixo: montam-se operações à medida que surgem crises e governadores pedem ajuda ao Ministério da Justiça, sempre com objetivo específico e tempo determinado. São exemplos operações em favelas, presídios e terras indígenas.

A PM no Ceará, terra do major Alkimar, por exemplo, tem método próprio de abordar. Como em outros Estados, em geral não mantém um diálogo com o suspeito, o que aumenta o risco de reações, mal-entendidos e disparos.

Os que ingressam na Força aprendem a narrar, de forma clara, cada ato seu, dizer que garantem a vida do suspeito e, no diálogo, tentam fazê-lo até entregar sua arma.

"É verbalizar antes de ser necessário atirar. Eu venho lá do meu Estado com as minhas técnicas, mas a padronização do procedimento é aquilo que se aplica em qualquer parte do Brasil, seguindo o eixo técnico-operacional e as normatividades das Nações Unidas e da Política Nacional de Direitos Humanos", diz o major Alkimar.

Por esse motivo, o treinamento se chama INC (Instrução de Nivelamento de Conhecimento). Há um "ciclo básico" em que PMs aprendem sobre locais de crime (especialidade de peritos), bombeiros, sobre violência doméstica, todos veem tudo.

Instrutores do Amazonas ensinam policiamento na selva. Os do Nordeste, como operar na caatinga. Também já houve aulas com americanos do FBI, sobre perícia e investigação, e com japoneses, de policiamento comunitário.

Um dos reflexos de uma "formação de alto nível", como classifica o ministério, é que a Força Nacional nunca matou ninguém. Já teve 12 mortos –o último no Rio, baleado durante a Olimpíada.

Fora de casa, o policial ganha diárias de R$ 144 a R$ 224,20, conforme a cidade de atuação (nas capitais, o valor é mais alto).Elas devem cobrir hospedagem e alimentação, mas muitas vezes (e durante o treinamento) os policiais ficam em alojamentos gratuitos, de forma que muitos cobiçam participar da Força –pois acumulam as diárias com o salário nos Estados.

MUDANÇA E CRÍTICA

Além de inativos, o governo autorizou recrutar militares que prestaram serviço temporário para as Forças Armadas, os reservistas. No último dia 24, foi retirada a exigência de que eles tenham cinco anos de experiência.

Militares das Forças Armadas não têm formação para policiamento, pois sua missão é a segurança nacional. Para compensar, segundo o major Alkimar, a instrução deles será maior, de 45 dias.

As flexibilizações têm gerado críticas de especialistas. Para o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, militares das Forças Armadas são treinados para eliminar o inimigo, enquanto as polícias ensinam que o criminoso deve ser punido pela lei.

"O objetivo de fazer crescer uma guarda nacional não deveria ser conduzido dessa forma, porque, ao acelerar o processo, desconsidera doutrinas diferentes [das polícias e das Forças Armadas] e joga fora os investimentos nas academias de polícia", diz Lima.


Endereço da página:

Links no texto: