Folha de S. Paulo


Entenda 14 propostas para solucionar a crise penitenciária no Brasil

Desde o dia 1º de janeiro, ao menos 136 pessoas foram assassinadas dentro de presídios brasileiros, principalmente nas regiões Norte e Nordeste.

Com tantas mortes, um cenário de superlotação e o domínio visível de facções criminosas das unidades, a dúvida que fica é: o caos penitenciário tem solução?

A Folha consultou especialistas em segurança pública e em prisões para discutir sete propostas anunciadas pelo poder público –tanto emergenciais quanto estruturantes–, além de outras sete medidas necessárias para estancar a crise.

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Propostas anunciadas pelo poder público

  • 1. Construção de presídios (estruturante)

Foi proposto: Temer anunciou R$ 200 milhões para novas cinco prisões federais (que já faziam parte do Orçamento) e, em dezembro de 2016, repassou R$ 800 milhões aos Estados, sem citar que se tratava de determinação do STF.

Já foi feito: Obras em finalização vão gerar 45 mil vagas.

O debate: O Brasil já tem mais vagas do que a demanda média global de presos, mas tem o dobro de detentos. "Fica evidente que não temos que aumentar as vagas, mas reduzir os presos", diz Valdirene Daufembach, ex-diretora de Políticas Penitenciárias. Leandro Piquet Carneiro, da USP, discorda: "Se a Justiça manda prender, a instalação precisa existir".

Presos e vagas por 100 mil habitantes -

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  • 2. Forças Armadas (emergencial)

Foi proposto: Escalação de mil militares para fazer varreduras nos presídios e detectar celulares, drogas e armas; eles não terão contato com os detentos.

Já foi feito: A corporação nunca foi usada em prisões, mas já atuou em favelas dominadas pelo tráfico no Rio.

O debate: O fato de os militares serem treinados para a guerra gera críticas. "Se não têm treinamento para lidar com as ruas, têm muito menos para lidar com presídios", afirma Fábio Sá e Silva, pesquisador do Ipea e ex-coordenador do Depen (departamento penitenciário do Ministério da Justiça).

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  • 3. Grupo nacional de agentes penitenciários (emergencial)

Foi proposto: Criação de um grupo de intervenção, como a Força Nacional, de cem agentes penitenciários cedidos pelos Estados, que entrarão em unidades em crise para fazer triagem dos presos e separar líderes de facções.

O debate: Leandro Piquet Carneiro, da USP, afirma que é necessário pois "a capacidade de contenção de crises [em prisões] é assimétrica nos Estados". Outros especialistas relembram críticas à Força Nacional: "O custo é alto, a eficácia é duvidosa e cria animosidade com forças locais", diz Sá e Silva. "Melhor seria estruturar os serviços nos Estados."

RAIO-X DA CATEGORIA
60 mil é o total de agentes penitenciários no Brasil
10 detentos por servidor é o que isso representa; o ideal seria 5
120 mil é o deficit dos agentes no país
R$ 3.000 é salário médio bruto

Fonte: Febrasp (Federação Brasileira dos Servidores Penitenciários)

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  • 4. Bloqueadores de celular e escâneres (emergencial)

Foi proposto: Repasse aos Estados de R$ 150 mi para a compra de bloqueadores e de R$ 80 mi para escâneres corporais (ambos já estavam no Orçamento).

Já foi feito: 24 unidades prisionais, em dois Estados, têm bloqueadores, e há 78 escâneres em presídios do país.

O debate: O analista criminal Guaracy Mingardi diz que os escâneres são imprescindíveis, mas requerem protocolos. "Há muita corrupção local." Para Maria Laura Canineu, da Human Rights Watch, eles evitam revistas vexatórias. Já o uso de bloqueadores é menos consensual. "Não é necessário em todas as prisões, só onde há crime organizado", diz Piquet.

Presídios com bloqueadores de celular -

Escâneres corporais em presídios* - Total: 78

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  • 5. Censo penitenciário (estruturante)

Foi proposto: O CNJ propôs uma grande pesquisa a ser realizada pelo IBGE, a um custo de até R$ 18 milhões. Já o Plano de Segurança prevê o Sisdepen (Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional), um cadastro alimentado pelos Estados (que foi desenvolvido desde 2012 e lançado em 2016, ainda no governo Dilma).

Já foi feito: O último censo das prisões data de 2012, e os dados mais recentes do Depen são de 2014. O Sisdepen e o Sistema de Execução Penal Unificado (SEEU), do Judiciário, atendem à lei que determina transparência no sistema.

O debate: A necessidade de mais dados é unânime. "É preciso informação para planejar políticas públicas, hoje feitas na base de impressionismos e preconceitos", diz Sá e Silva.

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  • 6. Força-tarefa para rever presos provisórios (emergencial)

Foi proposto: O CNJ propôs a chamada Reunião Especial de Jurisdição em cada Estado para acelerar julgamentos, com a análise da situação de presos provisórios.

Já foi feito: Mutirões carcerários são realizados pelo CNJ desde 2008, tendo beneficiado mais de 80 mil detentos com progressão de pena e medidas cautelares. Cerca de 40 mil presos provisórios foram libertados nestes eventos.

O debate: A medida é considerada importante, mas paliativa. Para Maria Laura Canineu, da Human Rights Watch, é essencial "eliminar atrasos injustificados no sistema de Justiça". "O CNJ deve pressionar para o cumprimento de sua resolução que diz que juízes devem rever casos de presos provisórios a cada três meses", diz.

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  • 7. Profissionalização de presos (emergencial)

Foi proposto: Oferta de cursos para profissões como jardineiro, padeiro e encanador para 15 mil presos, segundo o Ministério do Trabalho, com investimento de R$ 30 milhões. O país tinha 622 mil detentos em 2014.

Já foi feito: Os cursos estão previstos na Lei de Execuções Penais, mas apenas 1,3% dos presos estão envolvidos.

O debate: Especialistas apontam que a superlotação é um entrave, porque faltam espaços físicos e organização. Para Sá e Silva, do Ipea, é preciso "conectar educação, trabalho e geração de renda a partir do perfil econômico da região".

Presos em cursos profissionalizantes (2014) - Em %

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Outras medidas apontadas por especialistas em segurança pública

  • 1. Separação de presos (emergencial)

Dois tipos de separação estão previstos na Lei de Execuções Penais e em tratados de direito internacional: tanto entre presos provisórios e condenados quanto entre detentos que cometeram crimes graves e leves são comumente adotadas, seja pela superlotação ou ausência de instalações. Quanto à separação de acordo com a facção criminosa à qual o preso pertence, como acontece no Rio, há dubiedade. Se por um lado a prática evita as matanças que marcaram o início do ano, de outro, promove maior organização e controle das unidades pelos grupos.

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  • 2. Aumento no número de defensores públicos (estruturante)

É dever do Estado garantir ao preso assistência jurídica para a defesa dos direitos do condenado às progressões de regime, livramento condicional e indultos em feriados. A falta desta orientação e o deficit de defensores públicos, porém, retêm no sistema indivíduos que não deveriam estar ali. A Emenda Constitucional nº 80/2014 prevê que deve haver Defensorias Públicas Estaduais em todo o território nacional em um prazo de oito anos a partir de 2015 –hoje, apenas o Estado do Rio tem defensores em todas as jurisdições.

DEFICIT DA DEFENSORIA PÚBLICA (2014) -

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  • 3. Audiências de custódia (estruturante)

Criadas em 2015, as audiências de custódia permitem a avaliação da legalidade, necessidade e adequação de prisões em flagrante por juízes no prazo de 48 horas. O acusado é apresentado e entrevistado em sessões nas quais são ouvidos também o Ministério Público e a Defensoria Pública ou o advogado do preso. Em média, 50% dos presos em flagrante são liberados, com ou sem medidas cautelares impostas, para responder ao processo em liberdade. Presentes apenas nas capitais do país, as audiências precisam ser interiorizadas pelas várias comarcas e jurisdições.

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  • 4. Melhora na gestão prisional (estruturante)

Especialistas apontam que reina o improviso na administração penitenciária. É necessário estruturar a gestão e avaliar o quadro e o deficit de servidores, criando protocolos e dando condições para que eles contribuam para a reintegração do preso. "O agente penitenciário é parte de uma equipe multidisciplinar, que envolve gestores, psicólogos, assistentes sociais e médicos, sem a qual não se mantém uma rotina adequada nos presídios", diz Valdirene Daufembach, ex-diretora de Políticas Penitenciárias. Para o analista criminal Guaracy Mingardi, "o Estado precisa regrar a vida nas cadeias para diminuir o poder das facções".

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  • 5. Discussão da Lei de Drogas (estruturante)

A proporção de presos por tráfico de drogas dobrou de 2005 a 2014, o que fez com que o crime se tornasse a principal razão do encarceramento no país. Com isso, prende-se mais por tráfico do que por crimes contra a vida ou por crimes sexuais, considerados muito mais graves. "Nossas polícias não têm tempo nem recurso para investigar os crimes mais relevantes porque está totalmente voltada para crimes de rua", diz Daufembach. Para mudar essa realidade, parte dos especialistas pregam a revisão da Lei de Drogas de 2006, que retirou a pena de privação de liberdade dos usuários de drogas, mas não criou critérios claros e objetivos para diferenciar uso e tráfico. Muitos defendem a descriminalização do porte para consumo.

% das sentenças de crimes cometidos por presos -

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  • 6. Mudança no modelo de Justiça e penas (estruturante)

A resolução de diversos tipos de conflito por meio do instituto da prisão é criticada por parte dos especialistas, que lembram as recentes medidas de desencarceramento adotadas nos EUA como modelo. "Os governos precisam criar mudanças na legislação, adoção de penas alternativas e uso de tornozeleiras eletrônicas ", diz Fábio Sá e Silva, do Ipea. Para Daufembach, os brasileiros têm que se envolver no debate sobre outras formas de Justiça, segundo ela, mais efetivas. "É preciso que pensemos na Justiça restaurativa, em que a vítima participa do processo e há possibilidade de ressarcimento de danos." Para ela, o modelo atual está "inflando a máquina policial e judicial sem trazer as sensações de segurança e justiça esperadas".

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  • 7. Ressocialização (estruturante)

Segundo a Lei de Execuções Penais, além de ter caráter punitivo, a pena deve "reeducar" o preso e criar condições para a "harmônica integração social do condenado", o que está longe de ocorrer no sistema hoje, em que a taxa de homicídios é seis vezes maior que o já alto índice de assassinatos nas ruas do país. Especialistas apontam que tratar a questão prisional como de segurança pública prejudica o setor, já que os serviços penais não deveriam ter foco na repressão, mas na reintegração do preso à sociedade para a qual, invariavelmente, ele retorna.


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