Folha de S. Paulo


Ministro de Temer é 'reducionista' na crise carcerária, afirma ex-STF

Cotado em maio pelo presidente Michel Temer para assumir o Ministério da Justiça, o ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto, 74, avalia que o atual titular da pasta, Alexandre de Moraes, tem projetado sobre a atual crise prisional uma visão "reducionista".

Em entrevista à Folha, Britto diz que o governo não se antecipou ao quadro atual e agora "está correndo atrás do prejuízo, meio tateando". Afirma ainda que o sistema de controle das unidades prisionais "falhou" e possibilitou a formação de uma "instância paralela de poder".

Em 15 dias, mais de 130 detentos morreram no Brasil em meio à guerra entre facções criminosas -minimizada nos últimos meses por Moraes.

Temer costuma procurar Britto para tratar de questões jurídicas. Nesta semana, os dois se reuniram para falar sobre a crise prisional. A entrevista foi realizada na quinta (19), minutos antes de Britto ser informado sobre a morte do ministro Teori Zavascki.

Alan Marques/Folhapress
O ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto
O ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto

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Folha - O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, tem feito uma boa gestão?
Carlos Ayres Britto - Gosto dele no plano pessoal, sou amigo dele e enxergo nele um bom constitucionalista. Mas, pelo menos no que tange ao direito penal e ao sistema penitenciário, me permito dizer que ele tem projetado sobre as coisas um visual reducionista, uma visão monocular. Quando a visão autorizada pela Constituição não é essa, mas a mais abrangente possível. O visual é panfederativo e panrepublicano. Todos os órgãos do Estado estão convocados, autorizados e obrigados a atuar em parceria. O problema é sério demais para ficar entregue a um ou outro órgão público isolado.

Ele deveria, então, manter um diálogo com outros agentes públicos? É a isso que o sr. se refere como reducionista?
Ele deve entender que a matéria é séria demais para ficar apenas com os Estados. Séria demais para ficar com o Executivo e deixar o Judiciário de fora. Séria demais para ficar apenas com o Judiciário, tem de envolver Ministério Público e Defensorias Públicas. Séria demais para ficar só com o Estado, é preciso envolver a sociedade. O Estado entregue a si mesmo, sem vigília e cobrança da sociedade, só piora.

Falta um diálogo maior com a sociedade?
É. E faltou à sociedade tomar a iniciativa da conversa também. Ou seja, está faltando nessa história o que diz Thomas Jefferson: "O preço da liberdade é a eterna vigilância". Como a sociedade civil reduziu o grau de vigilância sobre o Estado, o Estado entregue a si mesmo só fez piorar. Porém, os dois juntos, o Estado por ineficiência e a sociedade por omissão, estão perpetrando, em matéria de sistema penitenciário, crimes contra a humanidade.

Como o ministro pode superar a visão reducionista?
Não é que ele tem uma visão reducionista, ele dá mostras de conduzir o tema sob uma visão reducionista. É necessário um choque de Constituição Federal, porque enquanto não tivermos um roteiro objetivo, vamos ficar nesse tiroteio de subjetividade narcísica. Precisamos de um ponto de convergência, de análise e de posturas propositivas.

A questão penitenciária se tornou de primeiríssima prioridade. Neste momento, é promover a convergência imediata e total de esforços para enfrentar esse inimigo que
se tornou número um.

O poder público, então, é responsável pelos massacres?
Também é responsável, porque o poder público está convivendo com um sistema paralelo de controle dos estabelecimentos prisionais. O Estado não tem de abrir mão do monopólio desse controle. Está havendo no Brasil um oligopólio quando só pode haver monopólio.

O sr. está dizendo que as facções também estão com poder sobre a sociedade?
Sobre os estabelecimentos penitenciários. Eles criaram um poder paralelo de administração e, às vezes, até de pessoas nem condenadas, de presos provisórios.

Como enfrentar o problema?
Há providências imediatas e mediatas. Neste momento, é formar mutirões em perspectiva panfederativa para combater o crime organizado.

Sem Estado organizado, como combater o crime organizado? O momento é de convocação de todas as forças vivas do Estado e da sociedade para o enfrentamento de um inimigo comum, que é perigosíssimo e estruturado.

Agora, mediatamente, o Estado não pode perder o visual da causa primeira da criminalidade, do encarceramento e das rebeliões, que é
a desigualdade social.

O governo federal demorou para reagir à crise prisional?
Acho que não se antecipou à crise. E é o dever do poder público prever, se antecipar. Está correndo atrás do prejuízo, meio tateando, mas está.

O sr. defende mudanças na legislação penal para reduzir o atual volume de prisões?
Neste momento, não. A Lei de Execução Penal é boa, prevê a progressão do regime e a humanização da pena. O que falta é cumprir.

O sr. defende a descriminalização das drogas contra a superlotação em prisões?
Há certos temas que têm um encontro marcado com a sociedade e esse é um deles. É preciso se abrir para esse entendimento de que como está não pode ficar. E que não é por criminalização, por punitivismo e por exacerbação de pena que se resolve o problema. Uma parcela que parece não desprezível gosta da fruta. Como fazer? Impedir, inibir e criminalizar? Ou dizer: vai ter acesso à fruta, agora, sob intensa contrapropaganda oficial quanto aos malefícios que esse vício causa.

Como o Estado tem agido com o cigarro e a bebida? Com intensa contrapropaganda e taxação alta. Isso podia ser estendido às drogas, mas em escala gradativa, talvez iniciando pelas drogas mais leves.

Houve um descontrole do governo federal na situação prisional no país?
Decididamente o controle foi insuficiente, foi precário. Não vou dizer que a situação era de descontrole, não tenho elementos para afirmar isso. Mas, objetivamente, o sistema de controle falhou e possibilitou a formação de uma instância paralela de poder.


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