Folha de S. Paulo


Facção tinha 'cela de comando' e negociou com governo do AM, diz PF

Uma investigação federal apontou que a facção criminosa FDN (Família do Norte) mantinha uma "cela de comando" no presídio Compaj, em Manaus, e negociou um acordo com o governo do Amazonas em 2015 em troca de "paz nas cadeias".

No Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), a FDN deflagrou no domingo (1º), segundo as autoridades penitenciárias, uma ação para dizimar membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) e outros presos, provocando 56 mortes –outros quatro foram assassinados em outro presídio na segunda (2).

A investigação sobre a FDN, denominada Operação La Muralla e conduzida pela Polícia Federal e Ministério Público Federal, apontou que o comando da facção, formado por seis presos, mantém "um controle quase total do sistema" penitenciário por meio de "homicídios e torturas".

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Cela de comando das faccoes Família do Norte e Comando Vermelho dentro do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, onde 56 presos foram mortos em massacre no domingo (1º) Créditos: Reproducao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Cela de comando da facção Família do Norte na penitenciária onde 56 foram mortos, em Manaus

Com a interceptação de mensagens eletrônicas trocadas por um dos chefes da FDN, José Roberto Fernandes Barbosa, a PF apontou que o governo estadual fez um acerto com a facção por volta de julho de 2015, em uma reunião na biblioteca do Compaj.

De acordo com a PF, "Zé Roberto" disse ter recebido a garantia do coronel Louismar Bonates, então secretário de Administração Penitenciária da gestão José Melo (Pros), de que não seria transferido para um presídio federal.

Massacre em Manaus
Fachada da penitenciária Anísio Jobim, em Manaus

Em troca da "paz nas cadeias", o governo estadual atenderia também um "antigo pleito" para extinguir dois pavilhões do CDP (Centro de Detenção Provisória) comandados pela sigla rival PCC.

O encontro, segundo a PF, ocorreu em meio a uma onda de violência que deixou pelo menos 38 mortos em julho de 2015 em Manaus. Para a PF, várias mortes foram ordenadas pela FDN no contexto de "guerra" com outras duas facções: PCC e Esparta 300.

A PF deplorou o suposto acordo entre governo e facção: "A FDN saiu fortalecida deste lamentável episódio, alcançando o domínio absoluto do sistema prisional e deixando o Estado ainda mais refém de suas decisões e vontades".

O governo José Melo (Pros) diz desconhecer qualquer negociação, afirma que não compactua com essa prática e que o interlocutor citado não integra mais a administração.

A investigação resultou em mais de 130 denunciados e 30 ações penais, mas ainda sem acusação formal a integrantes da cúpula do governo.

O líder da FDN manifestou, em mensagens eletrônicas, apoio à eleição do governador do Amazonas em 2014 e a intenção de ampliar a influência da facção para a política.

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Muros nos bairros da Uniao e Parque 10 escondem historias sobre chefes dos traficos e causam medo nos moradores. FDN e a faccao criminosa Família do Norte Foto: Reproducao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Pichação em Manaus exalta as facções Família do Norte, Esparta 300 e Comando Vermelho

"Zé Roberto" foi transferido para um presídio federal em novembro de 2015, mas somente após a deflagração da Operação La Muralla.

Em denúncia protocolada na Justiça Federal em fevereiro passado, a Procuradoria da República no Amazonas afirmou que houve vazamento de informações para os líderes da FDN sobre uma vistoria que deveria ter sido de surpresa no Compaj. Ele teria partido de dois PMs que fizeram a escolta de "Zé Roberto" para sessão de fisioterapia.

Também foram apontados indícios de "fraudes na contagem de presos em regime semiaberto do Compaj, envolvendo um supervisor de agente penitenciário" e "fraudes no controle de entrada de objetos no sistema", também envolvendo outro agente, que "facilitaria a entrada de materiais ilícitos para a FDN".

A investigação apontou que na "cela de comando" no Compaj foram pintadas as siglas FDN e CV (Comando Vermelho), do Rio de Janeiro –as duas atuam em parceria na venda de drogas como crack e cocaína provenientes da Colômbia. Na sala, foi apreendido um notebook com um "cadastro geral" da FDN.

'CAIXINHA'

Segundo a investigação da PF, a facção Família do Norte é mantida com venda de drogas e com "caixinha" paga por todos os filiados e depositada em contas bancárias abertas com esse objetivo.

Segundo mensagens trocadas entre "Zé Roberto" e "João Branco", dois chefes da FDN, a arrecadação deveria atingir entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão mensais. A "caixinha" seria usada para financiar o tráfico de drogas e "elevar o padrão de vida dos familiares" dos chefes presos e custear seus advogados.

A investigação federal está ainda cruzando e analisando todas as contas bancárias geridas pela FDN para determinar o valor total movimentado pelo grupo, mas há estimativas de altos valores.

Desde o início da La Muralla, foram aprendidas 2,2 toneladas de entorpecentes, avaliadas em R$ 18 milhões, além de armas de fogo "que incluem submetralhadoras e granadas de mão".

A facção ganhou vulto a partir de 2010 e foi estruturada, de acordo com a denúncia do MPF, nos moldes do PCC e do CV, incluindo uma estatuto próprio, denominado "Doutrinas da família".

Ele prevê a instalação de "conselhos" nas unidades prisionais, formados por "presidente, vice-presidente, porta-voz e tesoureiro". Na prática, agem como "tribunais do crime", segundo a PF, determinando a vida e a morte de alvos da dentro e fora dos presídios. As decisões são emitidas por meio de "decretos".

"As palavras de todos os integrantes serão válidas, analisadas e respeitadas, mas a palavra final em qualquer questão será sempre a do conselho", diz o "estatuto".

O documento apreendido pela PF prevê que "não serão permitidos e serão passíveis de correção" atos como "agressões entre irmãos amigos e companheiros".

Um organograma montado pela PF mostra no topo da facção FDN duas pessoas: "Zé Roberto" e Gelson Lima Carnaúba, o "Mano G". Abaixo deles vêm quatro presidiários, incluindo João Pinto Carioca, o "João Branco".

Todos foram transferidos para presídios federais após a deflagração da Operação La Muralla.

OUTRO LADO

O governo do Amazonas, comandado por José Melo (Pros), afirmou "desconhecer a existência das referidas negociações" com a facção criminosa FDN (Família do Norte) apontada em investigação da Polícia Federal.

A assessoria de imprensa do governo do Estado disse também que "não negocia e não compactua com tais práticas" –referência a suposto acordo com grupo criminoso.

Disse ainda que Louismar Bonates, coronel da Polícia Militar e ex-secretário de Administração Penitenciária da gestão José Melo, "deixou a pasta em setembro de 2015 e não integra mais os quadros do governo estadual".

Bonates não foi localizado pela reportagem desde a manhã desta quarta-feira (4). A assessoria de imprensa do Comando da PM do Amazonas disse que não mantinha os contatos do coronel.

TRANSFERÊNCIA

O governo do Amazonas disse ainda que, apesar de a investigação falar em suposto acordo para que José Roberto Fernandes Barbosa, um dos chefes da FDN conhecido como "Zé Roberto", não fosse levado a presídio federal, a transferência foi realizada em novembro de 2015.

Isso ocorreu, porém, somente depois da deflagração da Operação La Muralla, conduzida pela Polícia Federal e Ministério Público Federal.

O secretário de Segurança do Amazonas, Sérgio Fontes, disse à Folha que a proporção entre membros da FDN e da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) nas cadeias do Estado "é de cinco para um", mas que o número total de filiados à FDN é indeterminado.


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