Folha de S. Paulo


Propaganda de campanha, projeto de igreja na BA teve exageros de Crivella

"Quando estive na África, andei por Moçambique, Malaui, Quênia, Zâmbia, Madagáscar, Lesoto, Suazilândia, Burkina Fasso. Mas no sertão eu vi uma miséria pior."

Foi com essas palavras que o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), empossado neste domingo (1º) como prefeito do Rio de Janeiro, descreveu o que encontrou quando, em 1999, esteve na cidade de Irecê (BA) para instalar o que era então o principal projeto social da Igreja Universal, a fazenda Nova Canaã.

A fala ocorreu durante entrevista em 2013 com a apresentadora Sônia Abraão, no programa "A Tarde É Sua", da RedeTV.

O projeto tinha como objetivo ser exemplo de reforma agrária. Inspirada nos kibutzes israelenses, a fazenda teria plantações de alimentos com tecnologia de irrigação importada, moradias, escola, fábrica de extrato de tomate e uma confecção têxtil.

Era a forma que Crivella, que foi o engenheiro responsável pelo projeto, teria encontrado para livrar o município da miséria e da fome. Na época, era bispo da igreja e ainda não havia sido eleito para cargo público -ganhou vaga no Senado em 2002.

A fazenda sempre foi explorada em suas campanhas. O político propagandeava ter livrado a cidade da fome e levado água para o sertão do Nordeste, numa iniciativa pioneira.

A Folha esteve em Irecê nos últimos dias 13 e 14 e constatou que o bispo licenciado exagerou nas tintas com que pintou o município de 74 mil habitantes a cerca de 500 quilômetros de Salvador.

Irecê ficou conhecida como a capital brasileira do feijão, mas uma praga nos anos 1970 dizimou as plantações. O agricultores passaram ao plantio irrigado por meio de poços artesianos.

Quando Crivella chegou, há 16 anos, a cidade já era uma das maiores produtoras de cenoura, cebola e beterraba irrigadas do país. No ano que vem, Irecê completará 20 anos de sua exposição agropecuária, a ExpoAgri, que teve público de 120 mil pessoas na última edição e rendeu R$ 9 milhões em negócios.

"Sempre fomos um polo agrícola", diz a diretora da Associação Comercial e Empresarial de Irecê, Maria Lucine Souza, 47.

Quando Crivella diz ter levado água com tecnologia importada de Israel para o sertão, ignora, por exemplo, a existência de empresas como a Geocomercial, de irrigação de plantações, fundada há 40 anos na cidade. A Sertão Poços, de poços artesianos, existe há 20 anos no local.

A menos de dois quilômetros da fazenda, o agricultor Joenilton Bezerra dos Santos, 35, planta cenouras irrigadas há quase uma década. Ele utiliza 55 mil litros de água por hora para irrigar a sua plantação, que rende 6,6 toneladas por safra.

"Quando vim para cá esse método de plantio já era bastante utilizado", diz ele.

Oficialmente, a fazenda não é de Crivella, nem da Igreja Universal. Ela faz parte do Instituto Ressoar, de propriedade da TV Record.

Crivella doou direitos autorais da venda de CDs de música gospel, além de ter levantado R$ 300 mil no programa Show do Milhão, de Sílvio Santos, para a criação do projeto.

Segundo a direção da Nova Canaã, o projeto nasceu com foco na irrigação "para fornecer alimentos e renda aos moradores da região". Em 2000, contudo, o foco mudou e os esforços ficaram concentrados na escola que atende atualmente 604 crianças em tempo integral.

Segundo pais de cinco alunos disseram à Folha, a escola funciona muito bem. "É a melhor da região. Eu não preciso me preocupar com uniforme, transporte ou alimentação. Agora no período de férias recebi uma cesta de alimentos para ajudar em casa", disse a chapeira Denise de Souza, 24, mãe do aluno Pedro, 7.

Mas nem na menina dos olhos do projeto a iniciativa de Crivella foi pioneira. Irecê tem uma escola da Fundação Bradesco para 900 crianças instalada desde 1977 na cidade.

Onde fica - Irecê

MUDANÇA DE PROJETO

Mesmo com o abandono da parte agrícola, Crivella continuou capitalizar com o projeto inicial. Em entrevista ao jornal "O Globo", durante a campanha em que saiu vitorioso à prefeitura do Rio, o então senador reafirmou que a fazenda era "modelo de reforma agrária".

A futura primeira dama, Sylvia Jane Crivella, já afirmou querer replicar no Rio o modelo do projeto.

A Folha solicitou uma visita, que foi negada. A reportagem esteve em um terreno alto, vizinho ao local, de onde pode ter uma visão panorâmica da fazenda. Não há sinal de plantações.

Políticos e jornalistas de Brasília receberam neste fim de ano uma cesta com pinhas (fruta do conde) e um frasco de mel enviados pela fazenda.

O consenso na cidade é que a Nova Canaã não contribuiu para o desenvolvimento econômico local e que Crivella tampouco encontrou uma cidade arrasada pela fome.

Em 2002, o PIB de Irecê era equivalente ao das cidades de Paraty (RJ) e Presidente Venceslau (SP). O Índice de Desenvolvimento Humano em 2000 era de 0,542, maior, portanto, que a média da Bahia, de 0,512. A taxa de analfabetismo naquela época era de 18,43%, inferior ao da Bahia (23,15%) e do Nordeste (26,20%).

"Sempre fomos humildes, mas ninguém nunca passou fome. Quando a Canaã chegou, ajudou por causa da escola, mas não mudou a cidade. Nunca fomos miseráveis", diz o aposentado Antônio Joaquim da Silva, 84.

Ele nasceu no povoado de Meia Hora, que fica atrás da propriedade, e trabalhou no terreno em que a Canaã está instalada hoje, onde funcionava uma fazenda de gado.

Os projetos que prometiam mudar a economia de Irecê não saíram do papel. Em 2013, por exemplo, Crivella chegou a dizer que faria ali uma pequena usina eólica com sete torres e com a venda de energia levaria os alunos à Disneylândia, o que nunca ocorreu.

Uma cooperativa têxtil chegou a ser criada para a confecção de uniformes, mas foi fechada pouco tempo depois. Havia a previsão de uma fábrica de extrato de tomate e polpa de pimentão, que não também não foram para frente.

Em 2001, durante uma sessão solene na Câmara dos Deputados em homenagem a Nova Canaã, o projeto da fábrica de extrato foi elogiada pelos parlamentares que discursaram um ano antes da primeira eleição de Crivella.

OUTRO LADO

Procurada, a direção da Fazenda Nova Canaã esclareceu que houve uma mudança de projeto em 2000 e o foco passou a ser exclusivamente a escola para 602 alunos. São fornecidas aulas em tempo integral da pré-escola ao ensino médio.

De manhã, as crianças têm aulas regulares e à tarde, atividades extracurriculares, como práticas culturais, artísticas, esportivas, de lazer, além decursos de informática. A partir de 2017, serão oferecidas aulas de inglês e de redação. O projeto também dispõe de transporte escolar gratuito aos alunos.

"O projeto nasceu em 1998 como um programa com foco na irrigação da terra para fornecer alimentos e renda aos moradores da região que, na época, sofriam muito com a seca", disse, por meio de nota, o diretor operacional da Fazenda, pastor Leonardo Santos.

Segundo ele, desde 2000 que o objetivo é "garantir acesso de educação de qualidade", a partir da "compreensão de que a maior carência da população local é exatamente a educação"

Segundo Santos, o local tem plantações de milho, girassol, pinha e uma horta, tudo para consumo próprio, assim como os peixes criados em tanques. A tecnologia irrigada não está mais em uso.

"A tecnologia utilizada para a irrigação foi a mais adequada às características do terreno na época da implantação".

Procurado, Crivella não quis se manifestar.


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