Folha de S. Paulo


'Perdi tudo e tive que sair pela janela', diz boliviana após incêndio em SP

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Incêndio deixa três mortos em prédio na zona leste de São Paulo
Incêndio deixa quatro mortos em prédio na região central de São Paulo

Parada na calçada, Aylin Miranda, 27, observava o trabalho dos bombeiros no imóvel de dois andares que até a madrugada desta quarta (23) era a sua casa.

"Perdi tudo. Tive que sair pela janela com meus filhos", conta a jovem boliviana, uma das sobreviventes do incêndio que atingiu o prédio, localizado na avenida Celso Garcia, na altura da rua Bresser, no Brás, centro de São Paulo. Quatro pessoas morreram e outras nove precisaram de atendimento médico.

Por volta das 16h30, bombeiros ainda faziam o trabalho de rescaldo no local, enquanto alguns moradores aguardavam sem saber para onde ir. A Defesa Civil fazia o cadastramento das pessoas que receberão colchões ou serão encaminhadas a abrigos.

Mais cedo, um bombeiro desenhou a planta do local para tentar entender quantas pessoas moravam no imóvel e se alguma ainda estava desaparecida. "Esse senhor está bem, acabamos de confirmar que ele estava trabalhando na Feirinha da Madrugada", informou um bombeiro durante o levantamento.

As equipes chegaram a apontar uma menina de cerca de quatro anos como desaparecida, mas ela foi localizada bem, em outro local, no início da tarde. Não havia dormido no imóvel.

Duas moradoras bolivianas ajudavam o bombeiro na contagem dos vizinhos, assim com uma brasileira que trabalhava com as vítimas. Ela soube do incêndio enquanto trabalhava em uma feirinha da região, já pela manhã.

"Um rapaz estava vendo no celular e falou do incêndio. Eu só perguntei onde era e quando ele confirmou que era perto de um açougue vim correndo", conta a ajudante geral de 37 anos, que pediu para não ter o nome revelado.

A maior parte dos moradores do imóvel atingido pelas chamas é de bolivianos, que trabalham com confecção de roupas. Alguns moravam e trabalhavam no local.

O auditor fiscal do trabalho Renato Bignani foi ao local e afirmou haver indícios de que ao menos 20 pessoas trabalhariam para uma oficina clandestina, em "condições precárias". Ele afirmou que não tinha nenhuma denúncia de irregularidade no local, apesar de ter denúncias de problemas semelhantes em outros imóveis da região.

O MPT (Ministério Público do Trabalho) afirmou no final da tarde que abrirá investigações para apurar "se havia trabalho análogo ao escravo no local, bem como quantas pessoas trabalhavam e moravam ali, e em quais condições". Segundo o órgão, 30% de todas as investigações desse tipo abertas em 2016 eram relativas a oficinas de costura.

Um representante do consulado da Bolívia também esteve no local durante a manhã. Conversou com alguns moradores do imóvel e disse não ter informação oficial sobre vítimas bolivianas.

VÍTIMAS

Das quatro vítimas, apenas um homem foi identificado pelo apelido Perninha. Segundo moradores, ele era brasileiro e coordenava o local, que tinha sido invadido há cerca de quatro anos. Vendia e alugava os boxes feitos com divisórias de madeira. Os preços eram variados, indo de R$ 500 a R$ 7.000.

As outras três vítimas estavam com os corpos carbonizados, o que dificulta a identificação –segundo a polícia, duas são mulheres. Todos foram encaminhados para o IML (Instituto Médico Legal) central, onde deverão passar por exames de DNA e arcada dentária para serem identificados.

O incêndio começou por volta das 5h, no primeiro andar do imóvel, se alastrando por todos os boxes. Três corpos foram encontrados no primeiro andar e o quarto, no segundo.

"Queimou máquinas, material de trabalho e um monte de roupa", conta Aylin, que morava no local há cerca de dois anos com o pai, três irmãos e três filhos. As crianças, de 2, 4 e 11 anos, foram deixadas com uma amiga enquanto ela acompanhava os trabalhos no local na tarde dessa quarta.

Toda a família trabalhava na confecção de roupas. A brasileira que ajudava na identificação das pessoas afirmou ter buscado mercadoria por volta da 1h30. Os produtos feitos e embalados pelos imigrantes começam a ser vendidos a partir das 2h em uma feirinha da rua Juta, também na região do Brás.

"Acordei com os gritos e saí correndo para o parapeito. Até pensei em voltar pra pegar celular e carteira, mas não dava tempo. Se tentasse sair pela porta também teria morrido. Desci pela escada dos bombeiros", afirmou Ricardo de Melo, 39, que é brasileiro e morava sozinho em um dos boxes havia cerca de um ano. Ele também trabalha com confecção, mas não no local, em uma fábrica da região.

Também acompanhando o trabalho dos bombeiros, estava o boliviano Wilber Fernandes, 30, com chinelo e calça de agasalho, tudo que tirou do prédio quando fugia das chamas. "Não tenho mais nada, nem para onde ir", conta o rapaz, que morava no local havia três meses.

O secretário de Direitos Humanos, Felipe de Paula, acompanhou os trabalhos pela manhã. "Nossa preocupação agora é atender essas pessoas. Ver onde elas vão ficar, ajudar a conseguir novos documentos", afirmou ele.

Incêndio em prédio na zona leste de SP

INVESTIGAÇÃO

Ao todo, a Defesa Civil contabilizou oito famílias vivendo no prédio atingido pelo incêndio, o que totalizava 36 pessoas, entre bolivianos e brasileiros.

Três deles foram à delegacia da região e afirmaram ter havido uma briga entre o coordenador da invasão e um dos moradores, que teria então iniciado o incêndio. "Os moradores contaram que os dois discutiram e um deles ameaçou colocar fogo no local. Mas isso é uma coisa que vamos apurar ainda", disse o delegado Eder Pereira e Silva, do 12º DP (Pari).

O morador Ricardo de Melo, porém, apontou a fiação no imóvel como uma possível causa do incêndio. "Os fios ficavam em cima da madeira e como sempre tinha queda de energia era perigoso. Eu já tinha reclamado [com o coordenador]. Foram uns dez cortes de energia nesse ano", afirmou na tarde desta quarta.

A Subprefeitura da Mooca afirmou que está analisando se havia alguma irregularidade na situação do imóvel e o que funcionava no local. O órgão disse ainda, em nota, que, em casos de invasão em imóveis particulares, a solicitação de reintegração de posse é atribuição do proprietário.

A avenida Celso Garcia permanecia parcialmente interditada, na tarde desta quarta, por conta do incêndio. A SPTrans (responsável pelo transporte público municipal) informou que 36 linhas que circulam pela via, sentido bairro, tiveram o itinerário alterado até que a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) libere a via.

Incêndio no Brás


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